sábado, 30 de abril de 2011

HISTÓRIAS DE AMOR E TRAGÉDIAS (Cristóvão Tezza)


      A felicidade amorosa continua fiel ao destino de ser uma chama incerta e misteriosa.

      A mais célebre história de amor do Ocidente termina em tragédia. Romeu e Julieta se amam perdidamente, fruto de uma atração irresistível que sobrevive contra tudo e contra todos, mas não contra as forças do acaso. Por um pequeno mal-entendido,  ambos se envenenam e morrem. A moral da história imortalizada por Shakespeare vem exercendo um fascínio sobre nosso imaginário desde sempre. A lendária Guerra de Troia, há mais de 3 mil. anos, teve como gatilho uma história de amor: o rapto da princesa Helena por Paris, que se apaixonou por ela quando a conheceu em Esparta. O cerco a Troia que se seguiu durou uma década, gerando uma imensa cosmogonia literária, a partir da Ilíada e da Odisseia, de Homero, que marcou profundamente nossa civilização.
       Amor, tragédia e morte parecem assim interligadas pela história, pelo destino ou pelas circunstâncias. A percepção do que seria o inexorável fracasso das histórias de amor variou naturalmente ao longo do tempo. Para o mundo antigo, a ideia de destino costumava cobrir a totalidade das ações humanas - as coisas não dão certo porque estamos nas mãos dos deuses,  cujos desígnios são incompreensíveis e é inútil lutar contra eles. A partir da Renascença (e a tragédia de Romeu e Julieta é  uma referência),  começa a se desenvolver a ideia de que o homem pode, quem sabe, ser dono de seu nariz, ou investindo contra os deuses ou contra as circunstâncias. Seria preciso entretanto que a "sociedade dos indivíduos" que hoje nos define triunfasse completamente para que esse mantra mais ou menos absurdo - cada um faz o que quer e ninguém tem nada com isso - se tomasse uma espécie de senso comum, e até mesmo um direito, e o amar faria parte desse pacote moderno. O surgimento do conceito de amor livre - que tinha um sentido muito preciso nas comunidades hippies dos anos 60, a implosão de todas as amarras sociais - seria u ápice dessa suposta libertação.
          Utopias, entretanto, têm vida efêmera, e assim o amor continuou. digamos, com sua clássica rédea curta, por mais amplos que sejam os direitos do cidadão na sociedade ocidental contemporânea, A popularização do divórcio deu uma flexibilidade extra às manobras do amor, mas a felicidade amorosa, que parece gostar do escuro, continuou fiel ao destino de ser uma chama incerta e misteriosa De Shakespeare até nossos dias, as histórias de amor mais famosas tem sido também as mais desgraçadas. No século 19, Madame Bovary é destruída, com requintes de crueldade, pelo seu próprio sonho amoroso, Anna Karenina se joga debaixo de um trem. No Brasil, a atração de infância de Bentinho por Capitu deu no que deu - aquele filho com a cara do Escobar. Na grande literatura, o amor parece um empreendimento destinado ao fracasso. como se não tivéssemos aprendido nada nos três milênios anteriores.
          E não aprendemos mesmo. Histórias de amor¸ tentando explicar o que não compreendo -  são encontros tensos sonhando com a eternidade, o desejo do prazer perene sempre a um fio de desabar. Para entendê-las meio aos pedaços, temos de desembarcar do papel de amantes, colocar os óculos e pensar do lado de fora.
           Abri este texto assumindo o papel de "professor", que  é sempre confortável
- começamos por situar o problema na história e descobrir suas variáveis, e encerra-se o assunto. Poderia também representar o papel do "cientista", e aqui os pratos são cheios, porque o amor parece nascer, florescer e morrer exatamente na fronteira entre natureza e cultura. O "natural" é esse bicho do desejo que todos sabemos bem o que é - mas ele só existe sob uma forma cultural, um terrível complicador da felicidade. O século 20, principalmente pelo cinema, universalizou uma pílula suavizadora da tragédia amorosa, que é a comedia romântica. Nela, aconteça o que acontecer, acabaremos felizes para sempre. Sabemos que isso é, de fato, urna mentira, mas, enquanto isso, nos divertimos.
          A atração amorosa talvez seja o sentimento mais indócil dos primeiros 30 ou 40 anos de nossa vida. Mas, mesmo sob controle, não desaparece nunca - até o fim, continuará respirando, à espreita. Às vezes é muito difícil lidar com ela. Acho que a ficção continua sendo o melhor e mais produtivo modo de tentar entender o amor. É como se ela lançasse os dados criptografados dessa misteriosa atração e deixasse ao leitor a tarefa, ou antes o prazer, de interpretá-los.
                                        (Seção Filosofias da revista Lola, nº 7, abril 2011)

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