quarta-feira, 29 de agosto de 2012

EU, EU E MAIS EU


    Sabe aquela história de que se você quer alguma coisa bem feita faça você mesma? Meninas, é o contrário! Essa nossa incrível autoestima que nos torna tão centralizadora está é nos deixando exaustas, mal-humoradas, com libido zero. O tratamento é doloroso e radical. Mas funciona. E o remédio é delegar.Por Ana Paula Padrão

   Nos últimos anos, passei a alimentar  um discreto rancor por algumas verdades absolutas que me aprisionam  na roupinha da Mulher Maravilha.  Aliás, roupinha ridícula, hein? Um  tomara que caia todo vermelho e dourado que deixa os peitos pontudos e uma calçoIa azul de estrelinhas com uma cordinha pendurada na cintura de pilão! Botas de verniz de cano longo e com salto alto! Tiara de princesinha prendendo o cabelão cacheado! E aquela capinha de heroína flanando ao vento... Coisa mais datada... Fico imaginando que mulher, por mais maravilhosa que seja, conseguiria botar a louça na máquina vestindo essa parafernália! Que dirá combater o crime e libertar os fracos e oprimidos...  Não dá, esse modelito não nos serve. Mas continuamos espremidas dentro dele e, o pior, adorando posar de Super Isso, Super Aquilo. Uma superenxaqueca e uma superressaca são tudo que me resta toda vez que eu visto a capa da Maravilha e saio por aí salvando o mundo de todas  as suas terríveis imperfeições.

       Em dias assim eu trabalho. Como todos os dias. Tipo 14 horas por dia. Mas também faço supermercado. Ninguém escolheria os limões-sicilianos como eu. E decido o que vai ter para o jantar durante toda a semana. Preciso levar em consideração a dieta nova do marido. Eu levo a roupa para a lavanderia. Aquela mancha na camisa tem que ter uma explicação especial para que os profissionais saibam como tirá-la. Eu termino o relatório que ninguém consegue fazer no escritório. Eu pesquiso. Eu almoço com clientes. Tomo café com clientes. Faço apresentação para clientes. Eu faço meu check-up, distribuo os resultados a cinco médicos diferentes e marco consultas com todos eles. Fora do horário de trabalho. O que significa madrugar. E, portanto, dormir muito, mas muito menos do que as míseras sete horas que todo mundo deveria ter toda noite para conservar alguma saúde.
   Leio os jornais. Muitos deles. E livros, alguns deles. Claro que ainda tenho que fazer escova no cabelo. Fazer as unhas uma vez por semana. Pintar o cabelo a cada 20 dias. Hidratar a cada semana. Ligar pro pai. Pra mãe. Pra sogra. Atender as amigas desesperadas e oferecer o ombro para que elas chorem as pitangas. E tenho que fazer tudo isso direitinho, como só eu sei fazer. 
   Bem, é aqui que voltamos às verdades absolutas e aos cretinos que as inventaram. Sabe aquela história de que se você quer alguma coisa bem feita faça você mesmo? Deveríamos pendurar quem disse isso num poste, de cabeça para baixo, para servir de exemplo. Meninas, é o contrário! Se você quer alguma coisa bem feita, não a faça você mesma. Inclusive porque você quer todas as coisas bem feitas e o dia tem apenas 24 horas, e é claro que, das duas uma: ou não vai dar tempo ou alguma coisa vai ficar malfeita. 
   Outra verdade absoluta que colou nos últimos tempos é que nós, mulheres, somos muito, mas muito especiais mesmo! Somos autênticas, independentes, flexíveis, versáteis, dinâmicas, práticas, sábias, sensatas, inteligentes, atentas, multifuncionais, magnânimas, antenadas, temos o tal do sexto sentido, sabemos seguir nossa intuição e ela sempre nos leva ao caminho correto, enfim, somos o último biscoito doce do pacote! Certo? Errado. Vamos todas ser gongadas no quesito humildade. Estamos todas fora do nosso juízo perfeito se deixarmos nossa incrível autoestima tomar conta da nossa agenda. 
    Antes que alguém pense o contrário, eu adoro ser mulher! Uma vez, numa viagem ao Butão, um monge me disse que na próxima encarnação eu poderia voltar como homem se desse uma pequena contribuição ao mosteiro. Deve ser terrível ser mulher no Butão. Encarnar como invólucro de testosterona vale bem mais naquelas bandas do mundo. Agradeci, mas disse que estava bem satisfeita no formato mulherzinha. Apesar de achar aquela lista de adjetivos ali de cima meio exagerada. Não que ela não seja verdadeira, e já me perdoem pelo cabotinismo! Só que é apenas um lado da condição feminina. O outro, bem mais feio, é o da mulher exausta, mal- humorada, libido zero. Justamente porque acha que pode exercitar todas aquelas incríveis qualidades o dia todo todos os dias. 
   Centralizar é um erro. Eu sei que quando a gente vê o marido tentando fazer a mala para a viagem de trabalho dele dá vontade de sair correndo e refazer tudo. Pra ficar bem feita. Quando a gente entrega a lista de compras para que ele se vire no supermercado, já que está com a agenda livre naquele dia, tem que se conter para não criticar o fato de que agora tem mais cerveja do que refrigerante diet na geladeira. Ora, você já parou para se perguntar se a mala dele tem que ser feita do jeito que você faria? 
   Já pensou que ele está sendo muito esperto quando diz docemente que só você tem aquele talento especial para deixar tudo arrumadinho na mala e nos armários e que ele é um desajeitado sem cura? E que há anos todos eles usam argumentos assim para que você saia para trabalhar mas deixe tudo arrumadinho em casa? Você já imaginou que seu carrinho de supermercado só é melhor do seu ponto de vista e que pode ser que ele não suporte mais refrigerante zero no jantar? Não dá pra relaxar e curtir aquela cerveja com ele num fim de dia em que você, talvez, por acaso, não tenha trabalhado demais para cumprir aquela insanidade de compromissos? E que esse frescor mais o efeito da cerveja podem fazer milagres pela relação a dois? 
     Isso para falar da vida doméstica. No trabalho, podemos ser ainda mais atabalhoadas. Sob o manto da gestão horizontal, tipicamente feminina, escondemos nosso afã de acompanhar cada etapazinha de cada processo e dar pitaco em todas elas. Amiga, se você ainda não entendeu do que se trata, eu estou aqui falando de poder. Já se disse sobre ele que embriaga, alucina, destempera. Tudo isso é verdade. E esses tantos séculos em que fomos privadas de qualquer poder acumularam em nós uma espécie de anemia crônica. Mandar é bom. Mandar em tudo é ótimo! Pena que seja impossível. Mas continuamos lá dando nosso sangue e vestindo aquele corpete justérrimo da wonder woman para não abrir mão de nem um naco do poder de decidir. E de decidir, pela primeira vez em muito tempo, sobre nossa própria vida. Não, não se engane, esse não é um argumento bonito para defender um sentimento nobre. É uma doença. 
     E tem cura? Claro que tem. O tratamento é doloroso e radical, mas funciona. Para decidir de verdade, o remédio é delegar. Ensine o outro - e principalmente a outra, oh, o medo da competição! - e não fique perto acompanhando cada passo da tarefa. Entregue a missão, estipule metas, resultados, datas. E cobre. Simples assim. A primeira experiência será horrorosa. O resultado final vai lhe parecer muito aquém do que você mesma teria feito. Ok, controle-se. Está de fato ruim ou apenas diferente do que você faria? Enxergar alternativas vai abrir sua cabeça e seu coração além de muito espaço na sua agenda. 
     Delegue ainda tarefas domésticas. Seja esperta. Valorize-as! Imite o que eles sempre fizeram conosco. Faça parecer maravilhoso arrumar a mesa para os convidados. E deixe que outros - e principalmente aquele outro! - assumam o serviço. Diga que cozinhar é bom. Que homens na cozinha são supersensuais. Que ser um chef elogiado está na moda. Minta, se for preciso! Mas salve-se a tempo da praga centralizadora que suga sensualidade e seca feminilidade. Agenda apertada é menopausa antecipada. Delegue parte da sua listinha de afazeres antes que, da supermulher, reste apenas aquela capinha. .. 

..         (Revista  LOLA, maio  de  2012.)

domingo, 26 de agosto de 2012

NÃO MEXA COM QUEM ESTÁ QUIETO

 A escritora americana Susan Cain causou estardalhaço com a tese de que as pessoas introvertidas são mais focadas, criativas e inovadoras – vantagens despercebidas num mundo que acredita que todo bom trabalho tem de ser realizado em equipe. “As grandes conquistas e invenções da história foram feitas por pessoas sozinhas”, diz. 

A advogada e escritora norte-americana Susan Cain defini-se como uma pessoa introvertida – alguém que prefere “pensar antes de falar, ouvir mais do que falar e ler a socializar-se”. Foi com essa características que se formou na Faculdade de Direito de Harvard, uma das mais disputadas do mundo, e trabalhou com grandes clientes em escritórios de Nova York. Fácil não foi. Susan teve de faz das tripas coração para extrair as virtudes de uma personalidade que frequentemente sofria com a timidez – muitas vezes causadas pela pressão da sociedade. Certa vez, em Harvard, a a caminho de um grande anfiteatro,vomitou no meio do corredor de tanto nervoso que tinha ao falar em público. Já advogada, quase perdeu um cliente importante por não conseguir falar na hora da reunião. Superadas as limitações da timidez, ela começou, em 2005, a pesquisar o assunto a fundo, e o resultado é o livro O Poder dos Quietos, lançado neste mês nos EUA. Ancorada em centenas de entrevistas, Susan defende que pessoas introvertidas e quietas são mais criativas e inovadoras, principalmente no mundo do trabalho. Em entrevista a LOLA, ela fala das dificuldades dos come-quietos num mundo que aposta a fichas no ‘magnetismo pessoal” e na crença de que todo trabalho tem de ser feito em grupo.

LOLA: Quais são as vantagens de ser introvertido? 

SUSAN CAIN: São muitas; introvertidos, por exemplo, são muito focados, principalmente para solucionar problemas. Eles passarão mais tempo trabalhando neles do que os extrovertidos, e provavelmente se sairão bem melhores. Uma das pessoas introvertidas que eu entrevistei para o livro disse: “A questão não é eu ser mais inteligente; a questão é que eu passei mais tempo trabalhando no problema.” Pessoas mais quietas tendem ainda a escutar as opiniões e as sugestões dos outros, além de serem mais observadoras. O cérebro delas funciona prestando atenção em tudo o que está acontecendo ao redor, é da natureza delas. Por tudo isso, têm mais conhecimento e são mais bem informadas.

São mais criativas também?
Sim, os psicólogos detectam essa característica com frequência entre os mais quietos. Pessoas que ficam algum tempo com elas mesmas têm mais chances de criar. Estar sozinho é um catalisador de inovação. Quando estamos com outras pessoas, adotamos a opinião delas e não conseguimos diferenciá-la do que pensamos de verdade. Só temos noção de nós mesmos quando estamos sós.

Qual a diferença entre introversão e timidez?
Timidez é outra coisa, é algo doloroso. É quando a pessoa se preocupa com o que os outros vão achar dela e pensa que estão tendo pensamentos negativos sobre ela. Por isso ela se retrai. Alguns introvertidos não nascem tímidos, mas se transformam em pessoas retraídas porque sentem como se algo estivesse errado, estão sempre captando a mensagem de "tem algo errado com você e na maneira com que você gasta seu tempo". Isso pode ser um problema. No entanto, a timidez pode ser superada, e o lado bom do temperamento pode ser preservado.

E a diferença entre extroversão e carisma?
Essa é uma questão muito interessante. De fato, elas não são a mesma coisa Você pode ser introvertido com grande carisma. Carisma é mais sobre ter uma presença no ambiente em que você está É uma questão de autenticidade. Se você foca na pessoa com quem está falando e na mensagem que está transmitindo, isso pode transmitir carisma também. O que geralmente digo sobre introversão é que não importa como você vê as coisas. Você pode falar suavemente ou até hesitar um pouco, mas, se falar com convicção, terá carisma! Tendemos a pensar em líderes como pessoas carismáticas no sentido de serem simpáticas, dinâmicas, falantes. Funciona, claro. Mas, se olharmos na história, podemos ver que tivemos importantes líderes que
eram quietos.

Em que áreas os extrovertidos podem ser melhores?
Extrovertidos são bons em motivação, por exemplo. Se uma empresa estiver em busca de funcionários motivados, os extrovertidos funcionam bem. Eles são muito bons em aproveitar o dia; se querem algo, vão atrás com muito gás. E geral, são pessoas agradáveis de estar por perto, pois transmitem uma ideia de felicidade e sabem passar uma energia positiva. São boas companhias. Isso não significa que, apesar de serem melhores em muitos aspectos para o trabalho, os introvertidos saem perdendo na vida pesso Acho que tanto introvertidos quanto extrovertidos podem se sair bem no trabalho e na vida pessoal. Nós precisamos dos dois tipos, do mesmo jeito que precisamos de homens e mulheres. Os dois tipos podem ser competentes nas duas esferas.

O ideal não seria uma pessoa que se encaixasse entre os dois perfis?
De fato existe a palavra ambiversão, que diz respeito à pessoa que é um pouco introvertida e um pouco extrovertida. Todos nós temos um pouco de cada característica.

O problema está,então, na existência de um culto à extroversão?
Exato, e isso pode ser muito prejudicial. Na escola, os professores acham que as crianças mais quietas têm algo de errado, e contaminar os pais com essa exigência cultural de sermos extrovertidos e participativos. Acabam não estimulando talentos e características positivo das crianças quietas, esperando que elas manifestem suas ideias e talentos da forma tradicional, e não trabalhando para dar a elas habilidades e oportunidades para se expressa de outra forma, do jeito introvertido delas. Não temos como medir o impacto dessa cobrança crescimento de uma pessoa. Nas escolas, mais que nunca, estão estruturando o ensino na base da participação em grupo. Não sei como é no Brasil, mas imagino que seja a mesma coisa.

Trabalhar em grupo não é essencial?
Colaboração pode ser uma coisa maravilhosa. Veja John Lennon e Paul McCartney, eles formavam uma dupla e tanto. Eu não sou contra a colaboração. Sou contra esse conceito de que temos que trabalhar o tempo todo em equipe. Se olharmos as grandes conquistas e invenções da história, a grande maioria foi feita por pessoas que criavam por elas mesmas, sozinhas. Nós Úvemos hoje essa crença na comunidade, que seria fonte de amor e de criatividade. Escolas, ambientes de trabalho e instituições religiosas trabalham em cima dessa crença. É o que eu chamo de novo pensamento de grupo. Para quem defende essa linha de pensamento, a criatividade e as conquistas intelectuais vêm apenas da sociabilidade. Está errado.

A valorização da extroversão está relacionada com uma sociedade que não reserva espaço para a privacidade?
Sim.Quando destruímos a privacidade e a individualidade, acabamos destruindo hábitos naturais de introversão. Cada vez menos as empresas dão autonomia e privacidade a seus funcionários. Estão acabando com o habitat dos introvertidos, que precisam de um espaço de respeito e de um momento de solidão criativa. Os escritórios têm cada vez menos paredes, com interação cara a cara. São lugares que suportam pouca privacidade. Valorizamos demais o pensamento em colmeia, a opinião da multidão, e a colaboração tomou-se um conceito sagrado. O problema é quando extrapolamos o significado de colaboração e, por exemplo, queremos quebrar todas as paredes -
físicas e virtuais - da interação.

Você acha que vivemos uma falsa felicidade, com a ideia de que existem ambientes perfeitos de trabalho quando estamos em equipe?
Às vezes, acho que sim. Realmente, em alguns momentos em que estão juntas, as pessoas estão felizes de verdade. É mais divertido. No entanto, muitas vezes, fingem essa sensação. Sei porque me dizem com frequência. Por causa do tema do livro, as pessoas confessam o tempo todo esse tipo de sentimento. Eu sei que, muitas vezes, estão atuando, para ter a performance que esperam que elas tenham. De fato, não estão se sentindo confortáveis, tendo que falar o tempo todo e compartilhar tudo, o tempo todo, com chefes e colegas de trabalho.

De onde vem esse ideal de extroversão?
No Ocidente, vem de muito tempo. São sociedades baseadas na cultura greco-romana, que investia muito na força do discurso - uma aposta que persiste na sociedade dos grandes negócios.
De repente, tudo ficou focado no que a pessoa demonstra em uma entrevista de emprego ou em como ela fala. Valorizamos algumas características - como magnetismo - mais do que outras coisas.

No Oriente é diferente?
São conceitos bem diferentes nas duas sociedades. Na sociedade oriental, a quietude e a introspecção são muito mais valorizadas. Pessoas que falam muito não são vistas como inteligentes.

        (Por Carol Vaisman , revista LOLA, maio de 2012.)

terça-feira, 21 de agosto de 2012

A AMADA IMORTAL


 Aclamada por Debussy e Fauré, Guiomar Novaes foi chamada de rainha em vários idiomas, brilhou absoluta sobre as teclas por cinco décadas e viveu um amor maior do que a vida e a morte.  Por Luciana Medeiros.

   Em 1894, nascia em São João da Boa Vista, pequena cidade a poucas horas de São Paulo, a 17ª  criança de uma prole de 19, dos quais 11 sobreviveram. Era Guiomar Novaes, filha de um comerciante de café e uma dona de casa. Naquela época, toda moça de boa família era obrigada a ter aulas de piano. Enquanto as irmãs se esforçavam para aprender, ela tocava com facilidade as peças que ouvia. Aos 4 anos, Guiomar já era extraordinária.
   A última década do século 19 foi um momento de enormes mudanças no Brasil, em especial no eixo Rio-São Paulo. Com a abolição da escravatura e o final do Império, os anos de 1890 se mostravam efervescentes. Chegavam milhares de imigrantes. Crescia o número de jovens bem preparados para o mercado de trabalho e as famílias dos barões de café cada vez mais se interessavam pela alta cultura europeia. Foi o patriarca de uma dessas famílias que trouxe da Suíça o pianista e professor italiano Luigi Chiaffarelli. Ele conheceu Guiomar quando a menina tinha 7 anos e logo identificou nela um talento raro. Em pouco tempo, a garota prodígio estava dando concertos. Chamou tanto a atenção que foi levada à Europa por uma dama da sociedade paulistana, Alda Prado. Antes de embarcar, porém, fez um conceito de despedida. Na plateia estava o adolescente Octavio Pinto, colega nos estudos do instrumento, que olhava estarreecido e pensava: "Vou me casar com ela". Guiomar tinha 13 anos. Ele, 17.
  No Conservatório Musical e Dramático de Paris, 388 candidatos de todo o mundo disputavam 11 vagas. No júri, compositores consagrados, como Claude Debussy e Gabriel Fauré. "Imaginem aquele júri, exausto e entediado depois de ouvir centenas de candidatos tocarem a mesma peça, pedir a essa jovem para repetir a prova - para o próprio prazer! Incrível", descreveu na época um crítico americano. Guiomar passou em primeiro lugar. Uma carta de Debussy para o compositor André Caplet, descoberta nos anos 1940, ficou famosa: "A melhor foi uma jovem brasileira, que não é bela, mas tem os olhos ébrios de música e a capacidade de se isolar de tudo à sua volta, como só conseguem os grandes artistas". Mesmo fazendo aulas no conservatório com o renomado professor Isidor Philipp, a pequena pianista mostrou ter estilo e personalidade forte. Ela tocava uma balada de Chopin quando Philipp a interrompeu para fazer uma correção.
   "Compreendo", disse, e tocou tudo de novo, da mesma maneira. Depois de uma nova repreensão, ela voltou a responder "compreendo"... e tocou, pela terceira vez, igualzinho. "Então percebi que o jeito dela era muito melhor", declarou posteriormente o mestre. Em 1911, Guiomar se formou também em primeiro lugar no curso e saiu em turnê pela Europa. O sucesso trouxe muitos contratos de trabalho. Dois anos depois, em férias no Brasil, reencontrou o colega Octavio Pinto,  que sempre dava um jeito de estar por perto, mas nunca se declarava abertamente.
   Guiomar se preparava para retomar a turnê europeia , quando foi surpreendida pela eclosão da Primeira  Guerra Mundial. Planos interrompidos, só voltou a se apresentar fora do país em 1915, em Nova York. A crítica americana a recebeu com reservas - afinal, nunca tinham ouvido falar dela -, mas a resistência foi  ruindo, nota após nota, depois do primeiro recital. A  jovem concertista brasileira revelou-se uma das grandes atrações da temporada e tinha planos de retomar ao Brasil em 1917. Mas os Estados Unidos entraram  na guerra e Guiomar só voltou mesmo em 1919.
      Dez anos haviam se passado desde que o adolescente Octavio decidira em pensamento que a menina pianista seria sua mulher. O amigo compositor Francisco Mignone garantia que ele se mantivera fiel todo o tempo. Naquele ano, não a procurou de imediato, mas ficou por perto. A corte era delicada e constante:
mandava flores e marcava presença discreta nos concertos da moça. Guiomar era receptiva, porém reservadíssima - não dava demonstrações de ter sido conquistada. Mas tinha. Eles subiram ao altar em 1922, depois que ele a pediu em casamento com poemas escritos em sucessivos cartões-postais. A primeira filha, Anna Maria, nasceu já no ano seguinte. O segundo, Luiz Octavio, veio cinco anos depois. Sem abandonar a carreira de engenheiro, o marido se transformou em empresário e passou a resolver todas as questões do dia a dia, incluindo o cuidado com as crianças, deixando Guiomar livre para se dedicar ao piano. Fez mais: nunca abandonou os estudos de música, para não se distanciar do universo da mulher que amava. Ele ficava nos bastidores, permitindo que brilhasse. Aclamada internacionalmente e tendo sólida formação cultural, Guiomar permanecia modestamente à sombra do marido quando surgiam assuntos pessoais ou era necessário emitir alguma opinião para a imprensa. Uma das composições de Octavio, Cenas Infantis, feita para os filhos, foi muitas vezes tocada por ela. A relação era de profunda troca e contato permanente: o admirador e a artista, apaixonados um pelo outro.
     Em 1950, Guiomar já tinha no  currículo críticas entusiasmadas, a criação de um ~ prêmio de piano com seu nome em Nova York, a solidez da carreira. No Brasil, quase todos os grandes compositores dedicaram peças a ela, inclusive Villa-Lobos. Naquele ano, porém, adiou três vezes a ida aos Estados Unidos para sua turnê anual porque o marido  não estava bem. Tinha um problema cardíaco congênito. Só partiu depois que o médico garantiu que o estado de saúde dele era estável. Assim que pisou em solo americano, sentiu a terra se abrir sob os pés: Otávio faleceu subitamente, aos 60 anos. Apesar de adorada pelos críticos até o final da vida, Guiomar perdia ali o ponto de apoio fundamental e a  força maior. Chegou a pensar em desistir da arte, mas, contam os amigos, foi encorajada a prosseguir até mesmo pelo papa Pio XII, pessoalmente, numa visita da artista ao Vaticano. Mesmo com o baque pessoal, ela  fez concertos extraordinários, incluindo alguns dos  mais importantes de sua carreira, com a Filarmônica  de Nova York regida por maestros como Leonard Bernstein.
     Uma das provas de seu prestígio foi o convite feito pelo governo inglês, em 1967, para que protagonizasse o recital de abertura do teatro Queen Elizabeth Hall, depois de uma ausência de 25 anos dos palcos britânicos. A última apresentação fora do Brasil aconteceu em 1972, nos Estados Unidos, mas Guiomar não cogitava um adeus. "Ainda quero tocar em turnês pela América do Sul, Estados Unidos e talvez Japão", disse aos 78 anos. A saúde cada vez mais frágil não permitiu que realizasse o desejo. Em janeiro de 1979, ela teve um AVC; dois meses depois faleceu, vítima de uma parada cardíaca, sem ter voltado a subir nos grandes palcos. Mas os amigos diziam que a alma e o coração dela já tinham ido embora com Octavio, 29 anos antes, como Guiomar declarou ao jornal O Diário de Notícias, de 5 de setembro de 1952: "Não fomos namorados e noivos modernos. Vivemos um amor à moda de 1830 e nele encontramos encanto e poesia até o fim, até nossa separação inelutável. Hoje só penso, só rezo, só sonho por ele - mais que meu marido, meu companheiro de todas as horas. Nunca pensei que Deus o tiraria de mim tão cedo. (...) Minha reação imediata foi abandonar a música. Insistiram, todavia, comigo, amigos e parentes. A própria memória de Octavio, talvez mais que tudo, ele me fez continuar a cultivar aquilo que mais adorava - a minha arte. E nela encontro um grande consolo". o

. LUCIANA MEDEIROS é coautora do livro Guiomar Novaes do Brasil (Kapa Editorial), escrito com João Luiz Sampaio. A obra acompanha dois CDs com concertos de Guiomar com a Filarmônica de Nova York, lançada dia 27 de novembro de 2011, pelo Concurso Internacional BNDES de Piano.)

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

PEQUENO MANUAL DE ETIQUETA NAS REDES SOCIAIS


Postou? É para sempre. O que você lança no ciberespaço revela suas crenças, seus valores, preconceitos e... pode criar muita saia justa. Domine as regras de bom comportamento do mundo digital
Por Liliane Oraggio

     Assim como uma criança demora anos para  aprender a se relacionar civilizadamente, quem participa do Facebook, Twitter, Instagram e das demais redes sociais leva um tempo para incorporar o código de boas maneiras da vida virtual. "Ainda não saímos da primeira infância da era digital", diz Gil Giardelli, professor de mídias digitais da pós-graduação da Escola Superior de Propaganda e Marketing, em São Paulo. "E estamos compreendendo, na prática, como é lidar com as várias sutilezas do comportamento que ela inaugurou." Muita gente pensa que a internet, por  ser democrática e livre, tolera e aceita qualquer coisa. Não é verdade. Em um ambiente em que se conectam mais de 2 bilhões de pessoas do mundo inteiro, regras são necessárias. Basicamente, dois mandamentos das relações reais valem na web: trate os internautas como gostaria de ser tratada e jamais faça ali o que não faria em nenhum outro lugar. Pelo grau de contágio e rapidez das informações, um erro pode causar constrangimentos enormes ou gerar consequências _ irreversíveis. O ciberespaço não engole desaforo e não perdoa – o que se publica fica para sempre. Giardelli lança este mês este  mês um livro cujo título diz tudo: Você É o Que Você Posta (Editora Gente). Para fazer este breve manual de etiqueta virtual, que também  ajudará a garantir sua segurança, falamos com o autor e mais três experts: Carlos Affonso de Souza, coordenador do Centro de Tecnologia e Sociedade da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro, Lúcia Freitas e Liliane Ferrari, consultoras em mídias digitais, de São Paulo.

1)PEGADAS DIGITAIS - Para evitar ser Importunada, nunca deixe nos seus perfis telefones e endereços, nem de casa nem do trabalho.

2)FOTO DO PERFIL -  Ela define como quer ser vista. Então, antes de postar, por exemplo, algo muito sensual, pergunte-se: a que estou vinculando minha imagem? Que impacto terá na minha vida? Desenhos de super-heroínas, flor e afins ou um dique de quando você era criança até podem ser usados caso a intenção seja criar um cartão de visitas informal. Só não deixe o espaço vazio: é impessoal.

3)SENHAS SÃO SECRETAS - Ninguém, nem marido nem namorado, deve ter suas senhas, e vice-versa. Isso não é prova de fidelidade que se dê ou se peça. Bisbilhotar a vida alheia é invasão de privacidade e acaba em decepção. Com filhos pequenos, o controle vale até certo ponto: eles têm direito à individualidade. Mas ensine sobre segurança e arranje meios de tutorá-los. Troque as senhas anualmente.

4)PRIVACIDADE E RISCO - Conheça a política de privacidade dos sites para saber até onde pode ir. Mesmo tendo o direito de proteger seus dados, saiba que o provedor tem acesso a quem você é e ao que consome. E cuide-se com os rastros que deixa: nem todos se comportam como você espera. Que o diga a bailarina paulista Paula Venanzi, 33 anos. No segundo dia de namoro, o cara já virou amigo de Facebook de toda a lista dela. "Isso me irritou", lembra. Uma noite, Paula quis ficar em casa. Desconfiado, ele fuçou o perfil dela e descobriu que o ex-marido, músico, faria um show. Foi até lá, não a encontrou e abordou o ex. "Meu namorado foi agressivo, deu vexame. Quando soube, me senti invadida e incomodada com todo o constrangimento. Terminei logo a relação", conta.

5)OVERDOSE DE FOTOS - Não lote o feed de notícias dos amigos com imagens de suas crianças e seus pets, dos pratos que comeu e de viagens. É enfadonho. Publique só se as fotos forem incríveis ou contiverem alguma informação bacana.

6)PIRATAS E FALSÁRIOS – Não se foto alheias para divulgar produtos ou serviços que você oferece na rede. Isso fere o direito autoral e pode . render um processo na Justiça, embora as leis sobre o universo digital ainda sejam incipientes. Também não repita, feito papagaio, poemas que nem sabe se, de fato, são de Carlos Drummond de Andrade, Pablo Neruda ou um falsário. Muita gente inventa textos e assina o nome de um escritor famoso - e você, ao reenviar, ajuda a perpetuar a fraude. E passa recibo de ignorância.

7) CHECK -IN - Ele não foi criado para lhe dar 15 minutos de fama. O mundo não precisa saber que você acaba de chegar a um bar ou uma festa. Pergunte-se: o que vou postar ajuda alguém? O check-in presta serviço. Por exemplo: no congestionamento, você avisa as ruas a ser evitadas mas só digite se não estiver dirigindo! Ou, na fila de uma casa de show, informe que os ingressos já acabaram. Além de cafona, exibir seus passos por nada pode atrair stalkers, obsessivos que perseguem com objetivos criminosos ou doentios.

8) ACEITAR OU NÃO ACEITAR? - Se não conhece, não lembra ou não gosta, ignore o pedido. Rede social não é competição por número de amigos, mas um lugar em que você escolhe com quem e como se divertir. Ou sua vida ficará exposta demais. Crie grupos específicos de amigos; assim você direciona melhor seus posts. São raros os que valem para todos.

9) CURTIU? Pode gostar do post de alguém pouco íntimo, de fatos inusitados e curiosos. Mas jamais clique ali se a notícia for de morte, tragédia, guerra... Muita gente faz isso para sinalizar que é solidária e comete uma tremenda gafe. Também evite curtir o próprio post. Na vida real ou digital, autoelogio é falta de humildade.

10) IMAGEM PROFISSIONAL - As redes sociais são uma vitrine. Ali, 65% das empresas buscam hoje conhecer as pessoas para fazer negócios, contratar e até demitir. Nunca fale algo que soe como racismo, homofobia, xenofobia ou intolerância religiosa. Não critique o chefe e os produtos da empresa em que trabalha. E procure não se revelar demais. Episódio exemplar: Paul Whitee era treinador de futebol do Colégio Oxford Hills, em Maine, pequena cidade americana, e quis mandar uma foto dele nu para uma pessoa. Errou e enviou para todos os amigos. Resultado: o pai de um aluno viu e ele teve de pedir demissão.

11) DOSE CERTA - Não invada o espaço alheio com montes de posts. E controle-se nas madrugadas insones, que geram 50 facilmente. Três por dia, de preferência nos mesmos horários, são suficientes. O Hootsuite (hootsuite.com) permite programar os disparos.

12) MILlTÂNCIA CHOROSA - Como na vida real, reclamar sempre das mesmas coisas é chato. Ao fazer uma crítica política ou social, não só lance a questão, mas aponte saídas.

(Revista  CLAUDIA, agosto  de  2012)

domingo, 12 de agosto de 2012

NEM TUDO É BULLYING


  Especialistas alertam que o excesso de mediação dos pais e da escola está privando as crianças e os adolescentes de um importante aprendizado que é resolver os próprios problemas.  Por Paulo Camargo
   A cena é cada vez mais comum. Basta a criança discutir com um colega, receber uma crítica em classe, ser recusada na brincadeira organizada por um grupo na hora do recreio ou ter uma vontade repentina de faltar na escola e pronto: os pais já invadem a diretoria cobrando providências. E chegam com o diagnóstico na ponta da língua: "É bullying!" De tão repetido e debatido nos últimos tempos, o termo ganhou tamanha popularidade que virou rótulo para qualquer situação de conflito no ambiente escolar, até para os pequenos desentendimentos aparentemente normais ou aquelas piadinhas sarcásticas sempre trocadas por adolescentes. Para o bem da garotada, esse não é o melhor dos cenários, alertam alguns especialistas. "Considerar que tudo é bullying é tão nocivo quanto achar que nada é", avisa o psicólogo José Ernesto Bologna, de São Paulo.
   Uma das primeiras a levantar essa polêmica discussão foi a doutora em psicologia e pesquisadora inglesa Helene Guldberg, autora de Reclaiming Childhood: Freedom and Play in an Age of Fear ("Reivindicando a infância: liberdade e brincadeira em uma era de medo"). No livro, ainda não publicado no Brasil, ela denuncia o florescimento, nos Estados Unidos e no Reino Unido, do que chama de "indústria do bullying".
   O fenômeno teria encontrado terreno fértil para crescer porque vivemos em uma época marcada pelo excesso de proteção e de fiscalização das crianças, assim como pela falta de confiança de que as pessoas, de modo geral, sejam capazes de solucionar seus problemas por conta própria. "É cada vez mais assumida como verdade a ideia de que os indivíduos precisam de terceiros, ou seja, de especialistas que resolvam suas disputas ou lhes digam como se relacionar com o outro", afirmou Helene Guldberg a CLAUDIA. "Isso é negativo, pois mina a independência e a autonomia." De acordo com sua tese, não é uma questão de negar a existência do bullying nem de minimizar sua gravidade, mas de delimitar com maior rigor quando, de fato, se trata de um episódio que merece essa classificação e, principalmente, quando uma intervenção é recomendável. A interferência desmedida de pais ou educadores nas pendengas infantis acaba alimentando as dificuldades da criança para se relacionar, tanto na escola quanto na sociedade, e inibindo ou desenvolvimento dela. "Não é fácil saber o momento de intervir", admite Helene. "Há sempre o risco de, ao fazer  isso, o conflito se agravar. Além do mais, ao se meterem, os adultos estão passando a mensagem de que a criança não tem capacidade de lidar do sozinha com a situação."

O desafio da convivência
    Pesquisadores definem o bullying como uma perseguição sistemática que se materializa em repetidas humilhações verbais ou físicas. Não é raro que sejam ressaltadas aquelas características que fazem o perseguido se sentir psicologicamente fragilizado, como o excesso de peso ou a opção sexual. Os episódios costumam contar com um trio de protagonistas: o agressor, a vítima e a plateia, que participa da agressão ou apenas se cala e é conivente. A internet e as redes sociais colocaram mais lenha na fogueira ao propiciar o surgimento de uma variedade amplificada desse tipo de violência: o cyberbullying. O que antes ficava circunscrito a um ambiente social, agora pode não obedecer fronteiras e ser praticado 24 hora O brasileiro Joe Garcia, doutor em educação e estudioso da indisciplina escolar, conta que, apesar de sempre ter existido, o bullying surge descrito e caracterizado na psicologia por volta da década de 1970. "Historicamente, foi um avanço, porque despertou a atenção das autoridades, mas agora precisamos adotar uma atitude crítica em relação aos use e abusos, limites e possibilidades do conceito", pondera o educador. Em outro palavras, não dá para sair colocando esse mesmo carimbo nas diferentes manifestações de agressividade que ocorrem dentro da escola, embora todas elas acabem fornecendo uma revelação: "A convivência ainda é um dos maiores desafios a ser superado?", acredita Garcia.  Mas esse desafio nem sempre entra na pauta do dia. Efeito colateral de sua superexposição, o bullying tem monopolizado todas as atenções ofuscado outras questões relevantes, como a discussão se a educação dada hoje às crianças as prepara mesmo para a vida real. Em seu livro Why School Antibullying Programs Don't Work ("Por que os programas antibullying das escolas não funcionam"), não publicado no Brasil, o psiquiatra neozelandês Stuart Twemlow defende que as estratégias de combate adotadas mundo afora revelam uma preocupação maior em punir agressores do que em criar um ambiente de diálogo - e isso é essencial para que as vítimas se sintam capazes de se defender sozinhas e todos possam encontrar formas mais saudáveis de se relacionar.

A dor do amadurecimento
   No Brasil, há estados em que já é obrigatória a comunicação pela escola dos casos de bullying às Varas da Infância e da Juventude. Além disso, a proposta do novo Código Penal tipifica como crime essa forma de agressão. Um deslize dos programas de tolerância zero, segundo a inglesa Helene, é dividir  crianças em vítimas e agressores, simplificando demais os relacionamentos. "Não se ensina nada sobre a complexidade de amizades, os inimigos e as relações em geral. Em vez disso, é apenas sugerido que, toda vez que se sentir vitimizada, a criança poderá contar com terceiros para resolver seus problemas", ela critica. Na sua opinião, se não quisermos formar uma geração incapaz de lidar com insultos e os altos e baixos da vida, precisamos evitar posturas alarmistas e superprotetoras, ainda que o agredido necessite de empatia. "Devemos reforçar a ideia de que ofensas e atos de rejeição são perturbadores, mas que a realidade é assim, feita de bons e maus momentos, e logo ele vai se sentir melhor de novo." Já o brasileiro Bologna acredita que um equívoco das atuais abordagens do bullying é partir de um mundo ideal homogêneo, quando deveriam preparar para uma sociedade em que a diversidade é regra, não exceção. "A escola é o lugar das iniciações, onde as crianças e os jovens se socializam e devem aprender a conhecer a si mesmos e os outros, a conviver, a se defender e a se proteger." Difícil para os pais é aceitar que uma dose de dor é necessária para o processo de amadurecimento. Ser ignorado por um grupo da classe ou excluído de uma brincadeira não é o mesmo que sofrer bullying. Mas há mãe que não resiste a se meter em um caso assim. O impulso de proteger o filho simplesmente não permite ficar parada, e ela peca por excesso. Rejeição, raiva, frustração fazem parte da trajetória de todos, e não se deve privar os filhos de vivenciar tais sentimentos.
    Ninguém está dizendo para jogar a criança aos leões para que cresça na marra. Só não pode exagerar na proteção. Ou corre-se o risco de restringir a capacidade dela de enfrentar as situações mais corriqueiras da vida emocional. A questão é que o limite entre abandonar à própria sorte e salvaguardar demais é tênue. Até porque o ambiente escolar tornou-se mais complexo. "Se antes as manifestações de violência eram a opressão e o autoritarismo, hoje as crianças e os jovens sofrem também por solidão, medo, sentimento de não pertencimento e até de anonimato", diz Bologna. Daí a necessidade de enxergar além da poeira levantada pelo bullying. Ou talvez seja impossível dar apoio nessa hora.

educarparacrescer.com. br

(Revista CLAUDIA, agosto de 2012)

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

CUIDADO COM OS GURUS


   Eles me assustam pelo poder exercido sobre os adeptos – e sempre há um candidato a guru por perto.
  Aconteceu há muitos anos. Estava relaxado numa poltrona, num sobrado em San Francisco, nos Estados Unidos. Uma senhora gorda, esparramada a minha frente, me induzia a um transe. Falava em inglês que reproduzo traduzido:
- Você está vendo uma luz. Aproxime-se. Deixe que o Ser tome conta de você.
-Simmmmm...
   Eu me sentia vibrando com o Universo.
- Permita que o Ser responda pela sua boca.
   Uma força tomou conta de meu corpo.
- Aqui estooou...
- As energias deste rapaz são puras, oh, Ser?
- Sim... ele é um iluminado - respondi, tomado de sabedoria.
- Deve receber as energias da senda?
- Ooohhhh... sim, sim.
- Devo fazer sexo com ele?
  Despertei subitamente. Com os olhos semicerrados, observei a senhora de lábios brilhantes a minha frente.
- Nããããoooo.... vosso caminho é puro - continuei, em voz cavernosa.
- Oh, mas seria melhor para unir nossas energias.
- Não, não! - disse, mais preocupado.
  Ela me despertou. "Como foi? Não lembro de nada'; disse. "Ainda há um caminho a trilhar'; ela respondeu.
 Desisti dos próximos passos. Tive uma amiga chilena que largou marido e filhos para integrar-se a um templo em Los Angeles. Fazia parte dos eleitos de um guru para salvar a humanidade na guerra nuclear. Com meditação e exercícios, tais eleitos seriam transformados em pilha de energia positiva para reverter o Armagedon. A escolha movimentou um grande número de pessoas, de várias nacionalidades, interessadas em virar pilha. O desprendimento da vida material incluía limpar o templo, pois iluminados não contratam faxineiras. Cinco dias depois de deixar a família e o saldo bancário para trás, minha amiga esfregava o chão. De repente, sentiu duas mãos em seu traseiro. Era o guru.
- Mestre! Que é isso? - disse ela.
- Sou guru, mas também sou homem - ele respondeu, apertando um pouco mais.
   A chilena fugiu com as malas pela neve.
   Antes de continuar, quero deixar claro que sou espiritualista. Gosto de rezar. Acredito em outras vidas. Em energias positivas. Mas mantenho o espírito crítico. Gurus me assustam pelo poder que exercem sobre seus adeptos. E sempre há um candidato a guru por perto. "Conheço uma mulher que teve uma visão sobre você. Viu uma sombra muito negativa. Marque um encontro!", me disse um amigo, dia desses.
 Corajosamente, recusei-me a conhecê-la. Não preciso de um baralho para saber a continuação. Ela me dirá o que devo ou não fazer com minha vida. Eu, hem! Candidatos a guru têm técnicas. Uma é avisar sobre riscos, como no meu caso.
   Outra, falar sobre reencarnações anteriores em que a nariguda de hoje foi a Maria Antonieta de ontem; e o baixinho, Alexandre, o Grande. Elogios disfarçados também valem. Um amigo conheceu uma senhora que olhou para seu rosto e disse:
- Você é uma alma antiga.
- Sim, sim! - disse animado.
- Tem uma missão nobre na Terra.
- Sempre acreditei nisso!
   Quem não quer se sentir um anjo?
   Há gurus de todos os estilos: hindu, budista, celta, bruxo medieval, Nova Era. Todos pregam o abandono da vida material e a completa submissão. Conheci uma mulher que, em prol do crescimento interior, mudou-se para uma comunidade em Campos do Jordão, São Paulo, abandonando a profissão. Anos depois, procurava emprego como doida.
   Um conhecido quase perdeu a mulher ao entrar numa seita que obrigava a castidade umas três vezes por semana. Outro se filiou a uma que praticava o sexo para a purificação. O grupo quase acabou no Brasil: os rituais se transformaram em farra, e veio o descrédito.
   A intensidade do poder de um guru é inacreditável. Nem sempre seu interesse é o dinheiro. Há gurus que querem viver bem. Muitos não se preocupam com isso. Gostam de comandar vidas. Nem é preciso lembrar tragédias como a provocada pelo americano Jim Jones, que levou 918 pessoas ao suicídio, em 1978. Nos Estados Unidos, há terapeutas especializados em tratar pessoas abduzidas por gurus e resgatadas pela família.
   As religiões tradicionais saem ganhando, pois suas estruturas impedem o domínio absoluto de um mestre sobre o grupo. Mas a grande pergunta ainda é: por que uma pessoa precisa de alguém que lhe diga como deve viver?
  De Jesus a Buda, os grandes mestres aconselham a busca interior como caminho de evolução. Tanto na vida prática como na espiritual. É uma prova de sabedoria. O melhor guru é o que cada um tem dentro de si. .

(Walcyr Carrasco é jornalista, autor de livros, peças teatrais e novelas de televisão.-2 de Julho de 2012, EPOCA )

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

RECORDAR, ESSE PERIGO


"Encarar o passado não é fácil, e sessões de nostaIgia costumam terminar mal"

   O que fazer dos velhos discos, aqueles que você guardou porque achou que eram importantes - e que trazem, cada um deles, lembranças de momentos vibrantes, como paixões que pareciam de filme francês ou dores de cotovelo inesquecíveis? Naquele tempo tudo era festa, até os sofrimentos por amor. Mas, voltando aos discos: ouvir, nunca mais, pois o toca-discos (esse móvel? objeto?) já pertence à pré-história. Mas eles estão lá, na estante, e é preciso ter nervos de aço, sem sangue nas veias e sem coração, para se desfazer deles. Como nem o porteiro, que sempre resolve esse tipo de problema, tem toca-discos, só mesmo a lata de lixo, que tristeza! Além dos discos, tem as fitas e, além das fitas, os CDs, que depois do iPod fazem parte de um passado remoto.
   Quanto maior a quantidade, maior o problema; encarar o passado não é fácil, e sessões de nostalgia costumam terminar mal. Algumas fotos trazem lembranças alegres de tempos felizes que nunca mais. E "nunca mais" são duas palavras difíceis de aceitar - tratem elas de um homem ou de coisas muito mais sérias, como o cigarro que você deixou e que também nunca mais.
   Se num dia de chuva der aquela vontade de puxar uma tristeza, pense na noite de on.::~ril, em que você não fez nada de extraordinário além de ver um filme na televisão comendo uma pizza; pois fique sabendo que até esse momento banal faz palie do "nunca mais". E, se quiser ficar ainda pior, nada como abrir a caixa das fotos: vai ter um belo dia pela frente, e não diga que eu não avisei.
     O que fazer, afinal, desse monte de coisas que é nossa vida - aliás, foi nossa vida? Se tiver coragem, jogue tudo em um saco de lixo, leve para o sítio e prepare uma bela fogueira. Mas quem consegue? Quem sabe você fica aliviada, leve, achando que se livrou do passado, que a partir dali é só o presente ~ o futuro. Mas não tenha tanta certeza assim; quem somos nós se não temos passado?
   A gente acaba empurrando com a barriga e adiando - quem sabe um dia desses, com um amigo para ajudar, tomando um uísque e ouvindo Roberto Carlos. E ainda tem mais: além dos discos, fitas e fotos, tem os recortes de jornais e revistas.
  Não é fácil jogar fora o recorte com seu nome publicado pela primeira vez num jornal. Aquela página amarela arrasa, mas lembra o que você sentiu quando viu sua primeira foto numa revista? A vida é mesmo curiosa: tudo o que se guarda é para lembrar, e tem uma hora em que só se quer esquecer, vai entender. E tem as cartas, ai, meu Deus. As de amor, assim como as fotos desse tempo, é de praxe que sejam rasgadas logo que o namoro acaba - e reze para que as que você escreveu tenham sido destruídas, pois, se alguma viesse parar em suas mãos, seria caso de morrer, tal a vergonha.
    A natureza humana é espantosa; como as pessoas são diferentes umas das outras. Penso, com inveja, nas que vão às festas do tipo "parece que foi ontem" e nas que se encontram uma vez por ano com as amigas do colégio para falar do passado. E nas famílias que se reúnem aos domingos para almoçar e, depois.olham fotos de viagem, fitas de vídeo feitas nas férias, comentam sorrindo como os netos cresceram e, depois, vão dormir sem nem precisar tomar tranquilizante, na mais completa paz.
    Elas não sabem quanto são felizes.

   (Danuza Leão – Revista CLAUDIA, agosto de 2012.)

domingo, 5 de agosto de 2012

A FELICIDADE VIROU UMA OBSESSÃO


      O psicanalisa Francisco  Daudt  da Veiga afirma que estamos confundindo o sagrado direito de querer ser feliz com uma busca frenética pelo prazer imediato. E defende a amizade como a única coisa capaz de sustentar um casamento por décadas.  Por  Carol Vaisman.
      É óbvio, é óbvio ululante: todos os homens, sem exceção, procuram ser felizes. Nada e mais justo, nada é mais certo – mas talvez nada seja também tão acidentado quanto essa busca permanente.Mas a peleja é ainda mais dramática  nestes tempos de vícios em grandes emoções. “Vivemos uma época de busca frenética pelo prazer imediato, que está sendo confundida com felicidade”, afirma o psicanalista carioca Francisco Daudt da Veiga, Com 35 anos de experiência  em consultório, ele passa os dias imerso  nos sintomas dessa ansiedade geral que impacta especialmente as relações amorosas e a vida em família.  Na entrevista que se segue, o autor de livros como O Amor Companheiro e Onde Foi Que Eu Acertei,  fala desse mar batido que cerca os casais, a busca pelas terapias de casa, a predisposição à separação (para encontrar a tal felicidade) e a tendência de idealizar o outro. E defende que a amizade é a única coisa capaz  de manter um casamento feliz por décadas. “Ela é o verdadeiro porto seguro da nossa emoção”, diz,contrapondo -a  à paixão – uma espécie de “loucura temporária”.

LOLA: Por que as pessoas estão precisando tanto de ajuda para lidar com o casamento?
FRANCISCO:   As terapias de casal são, na maior parte, UTIs para casos terminais, quando o melhor que se pode fazer  é ajudar para que a separação não seja tão doente. Às vezes, elas ajudam efetivamente aqueles que têm dificuldade de comunicação, o terapeuta serve de intérprete e diplomata entre as partes. Ao mesmo tempo, pode se pensar que a maior busca de ajuda tem a ver com sua contrapartida: a facilidade com a idéia de separação faria aumentara busca de alternativas. A obsessão pela felicidade, fenômeno social recente, atua nas duas pontas – separação e terapia.                       

O  medo de sofrer virou uma epidemia?
       O que existe é essa  obsessão pela felicidade, que dá um empurrão em uma das características da natureza humana: a húbris (palavra de origem grega que significa o excesso, a euforia), que sempre nos levou a rir, chorar, sofrer, a nos drogar como nenhuma outra espécie o  faz. Vivemos uma época de busca frenética pelo prazer imediato, confundido com felicidade. É como se diz por aí: gastamos um  dinheiro que não temos, consumindo coisas de que não precisamos, para impressionar pessoas que não conhecemos.

As pessoas hoje acham que tudo precisa ser discutido, precisa ser levado ao divã?
       Há quem pense isso. Já me vi envolvido numa discussão em que a pessoa defendia análise para a humanidade inteira, e eu na posição oposta, mostrando o perigo de autoritarismo e homogeneização cultural que tal ideia contém. Quando recebo um paciente, recebo um passaporte de limites precisos: só é da minha conta o que for sintoma. Se o paciente aprecia exercícios físicos (sem vício nem obsessão), apesar de eu ter horror a eles, decididamente não é da minha conta.

Os relacionamentos amorosos ainda são muito idealizados?
     Sim, principalmente quando há paixão. A paixão é  um estado de loucura transitória em que a pessoa não se relaciona com a outra, mas com a idealização que faz da outra. Por isso, sugiro sempre que os casais só tenham filhos - essa sociedade eterna - quando a paixão passar, e possam avaliar o amor que têm (ou não) em bases mais realistas.

A amizade é sempre a receita para um casamento feliz?
       Se amizade quer dizer querer o bem do outro, achá-lo interessante, ter afinidades, curiosidade sobre ele, e haver reciprocidade desses sentimentos, a probabilidade de aumentar a vontade de estar junto é grande - e isso proporciona um casamento feliz. Para os gregos clássicos, a amizade é uma das três formas de amor (filia: amizade; ágape: camaradagem; eros: atração sexual). Ela combina intensidade e capacidade de crescimento, pode incentivar erros, fruto do carinho e da intimidade, mas não no registro da paixão, onde o bicho pega.

Você diz que, se o amor companheiro acontece por acidente, ele corre o risco de ser acidentado. Por quê?
       Afora anúncios em sites de relacionamento ("Procuro amigo que se interesse por música clássica e coleção de selos", etc.), que são de baixa eficácia, a descoberta de afinidades e de atração por outras pessoas é mesmo acidental. Quanto ao fato de o amor companheiro ser acidentado, não há relação humana imune a esse risco. E ele é das mais seguras.

Mas excesso de companheirismo não pode minar a vida de um casal?
       O companheirismo é uma bênção na vida de um casal. O apoio mútuo, a cumplicidade, o achar graça um no outro, ter o que conversar são coisas que só enriquecem e fazem aumentar o amor. Talvez o que você chame de excesso de companheirismo seja a tendência de certos casais perderem suas individualidades e querer partilhar tudo o que vivem, se "naquela base do só vou se você for", inclusive a senha do computador. De largarem mão do direito de ter vida própria e confundirem amor com o "de hoje em diante sereis um só corpo e uma só alma", que até hoje alguns padres dizem. Isso, sim, é um desastre que leva ao ódio reprimido, ao sadomasoquismo e/ou à separação.

O número de pessoas que moram sozinhas  está cada vez maior por aí. Em Paris, mais da metade dos lares é formada por pessoas solteiras. Em Estocolmo, o índice é de 60%.O afeto é bem resolvido para essas pessoas?
        Isso envolve o cultivo do indivíduo, percebendo-se com ideias próprias, gostos próprios e vontade de respeitar suas idiossincrasias. Corremos o risco de individualismo narcisista? Sem dúvida. Na outra extremidade está o coletivismo soviético, onde o  conceito de indivíduo era algo a ser exterminado em favor da comunidade e do Partido, a ponto de dizerem que "o comunismo venceu a morte, pois a pessoa não passa de uma célula do grande corpo da sociedade ideal, que continuará vivendo, mesmo que a célula se perca". Deu no que deu. Mas também não há muito sentido em as pessoas morarem juntas se não têm nem querem ter filhos - gerenciar uma família é um ótimo motivo para viver junto.

Como a ansiedade dos pais interfere na criação dos filhos?
       A ânsia de ver os filhos felizes pode levar ao wagging the dog ("sacudir o cachorro pelo rabo": um cão sacode o rabo quando está alegre, mas o contrário não funciona: se você sacudir o rabo do cachorro, ele não fica alegre). "Ah, meu filho vai ser muito preparado: botei ele no inglês, no judô, na ginástica olímpica, na natação, no piano, na aula de artesanato e no futebol."  É, encheu a agenda do filho a ponto de ele não ter tempo para brincar, nem sozinho. Se você quer seu filho saudável, contemple-o, aprenda a lê-lo, a compreender a pessoa que ele é, suas necessidades, que devem ser acolhidas, e suas capacidades e ambições, que devem ser apoiadas.

Quais são os perigos de se antecipar às vontades dos filhos?
         "Eu tive uma infância mais pobre, ficava invejando o brinquedo dos outros. Meus filhos não vão passar por isso", e com essa ideia saem os pais comprando para os filhos aquilo que eles, pais, gostariam de ter tido, e contribuindo para um desastre, que é uma geração apática, sem vontades, sem projetos, sem ambições e mimada. É um ponto em que, nos Estados Unidos, o termo spoiled (estragado, mimado) está sendo substituído por entitled (que se sente no direito de  ter tudo, com arrogância). São jovens com a intuição de que as coisas caem do céu, sem esforço nem espera.

E qual é o papel da paternidade hoje?
       Os homens colhem hoje um beneficio precioso, que é fruto do feminismo: a paternidade participativa.
Quando eu era menino, nos anos 50, meu pai era daqueles que chegavam do trabalho para jantar e corrigiam nossos modos à mesa. Pouco mais que isso. Era um provedor ótimo, mas que não deu moleza em matéria de dinheiro - o que foi um grande estímulo para a busca de nossa independência financeira. Eu, por minha vez, já tive a oportunidade de me envolver mais ativamente na criação de meus filhos, participar de suas conquistas e consolar seus dissabores, sem nunca perder a autoridade (a principal ferramenta na criação dos filhos), mantendo a austeridade (uma atenuação da mão fechada do meu pai), cultivando o espírito, valores éticos, senso de humor, leveza no trato de qualquer assunto, mas nunca a leviandade. Ou seja, um pai de hoje pode ser pai de um jeito muito mais ativo.

E o papel da maternidade foi afetado?
         Por certo. Mães que trabalham fora aprendem que o cuidado dos filhos pode ser partilhado com várias pessoas que gostam deles. Marido, creche, parentes, babás (demita aquelas que querem desenvolver dependência nas crianças, fazendo tudo por e com elas). Já é mais raro encontrar crianças que "estranham" se não estão no colo da mãe ou agarradas à sua saia. Meu principal medo é que essa mãe se sinta culpada por não dar aos filhos dedicação integral e queira compensá-los pelo excesso. A culpa é o principal corrompedor da tão necessária autoridade.
                      (Revista LOLA, abril de 2012)

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

PEQUENOS PRAZERES


          Aventuras de uma mulher que fez uma cirurgia bariátrica (redução de estômago) para emagrecer.
         Achei muito interessante este artigo, principalmente para as pessoas que acham serem as cirurgias uma solução para os seus problemas estéticos, mas não lembram dos sofrimentos por que terão de passar.

ANTES
     Não bebo. Sou abstêmia por opção. Entre comida e bebida, sempre preferi minha parte em sólidos. De preferência, bocaditos bem temperados , fritos, assados, refogados. Trocava qualquer refeição por pastel, empada, coxinha, presunto cru, queijos duros, pão, batatinha frita. Salgados de maneira geral. Nunca, jamais, em tempo algum, pensei que essas características me credenciassem como caso ideal para a cirurgia bariátrica. Sim. Sou uma gourmet operada.
     Meus terríveis hábitos alimentares  levaram o ponteiro da balança a se mexer do jeito que eu gostava de comer: devagar e sempre. Resisti muito em fazer a cirurgia. Na verdade, demorei dez anos entre pensar no assunto pela primeira vez e entrar na faca. Ponderei, argumentei, relutei (tudo isso comigo mesma): como viveria sem satisfazer minhas caprichosas papilas gustativas?  Relutei. Até que a realidade me sacudiu. No ano passado (que, por uma série de problemas graves de saúde na minha família, reuniu os piores dias da minha vida), um início de uma hérnia na lombar e um joelho com a cartilagem desgastada me chatearam bastante. Resultado de um índice de massa corporal superior a 40 pontos, que me qualificava como obesa mórbida nível 3. Até tinha paciência de levar a vida assim. Mas toquei o fundo do poço quando minha pressão bateu 17 por 14. E eu estava tomando remédio para controlá-la há muito tempo. Operar, então, se tomou uma decisão, pelo menos a médio prazo, de sobrevivência.
    Fui ao cardiologista, que me recomendou um endocrinologista, Daniel Lerário, que me mandou conversar com o chefe da equipe com a qual ele trabalha, o gastro Thomas Szegö, precursor da cirurgia bariátrica por laparoscopia. De imediato, ao ouvir meus hábitos alimentares, ele disse: "Você é caso ideal. Não é do tipo que gosta de lautas refeições e não bebe". Das muitas coisas que ouvi naquela consulta, uma me deu fortes esperanças: "Você vai trocar as churrascarias pelos restaurantes franceses com suas porções pequenas". Agora, cá entre nós, o que me convenceu mesmo foi ele dizer que sabia que eu não conseguia perder peso. Enfim, alguém confirmou que eu sofria de uma condição de saúde, a obesidade. Eu não era uma fracassada de dietas profissional.
      Contei a decisão para minha mãe. Ela perguntou todos os detalhes sobre o procedimento, conhecido como derivação gástrica com reconstrução em Y de Roux. Resumo: um pedaço bem pequeno do meu estômago seria separado e ligado ao intestino. Apavorada com a ideia, ela jogou baixo: "Minha filha, não faça isso. Você... [pausa dramática]... nunca mais poderá comer farofa". Balancei. Hoje, sei que não é bem assim. Eu posso comer farofa. Pouquinho e devagar. Mas nem a imagem do mundo sem farofa me faria capitular.

DURANTE       
      Por dois meses, fui a consultas com fisioterapeuta, nutricionista, psicóloga e tentei não pensar no pós-operatório. Me viraram da cabeça aos pés, com exames laboratoriais e de imagem. Toda noite fazia exercícios para aumentar a capacidade respiratória e circulatória. Entre uma soprada e outra, uma flexão e outra, elaborava mentalmente uma lista de tudo o que eu queria comer antes da operação. Me contive. O alerta era claro: se aumentasse de peso até a cirurgia, nada feito. A temporada pré-faca incluiu uma viagem para Buenos Aires, onde tive a pachorra de tomar um sorvete de doce de leite com chocolate no Freddo. Isso depois de traçar um bife de tira com papas fritas. Para compensar, andava bastante. Dois dias depois de chegar a São Paulo, eu era admitida no hospital.
       Dois dias após a operação, veio a alta. Seis pequenos cortes arroxeados denunciavam a cirurgia. Não tinha dor, mas me sentia mexida. Não tinha vontade de comer muito. A dieta de caldo, coado, sem resíduos, bebidas isotônicas, sucos de determinadas frutas, água de coco e gelatina diet, nos primeiros dias, caiu bem. Bebia em intervalos de meia hora e em porções de 20 mililitros (meia xícara de café) divididos em pequenos goles. Ai, credo. Não posso nem escrever "gelatina diet" que me embrulha o estômago (pequeno). O gosto do ciclamato foi ficando cada dia mais acentuado. Até que o simples aroma acabava comigo. Isso se repetiu com tudo que tinha conservante e corante. O momento alto do meu dia era o beef tea, um caldo bem ralinho feito com água, vegetais e acém, cozidos durante horas. Aquilo era a única coisa que me dava força, substância. E era gostoso. Entre o almoço e o jantar, comia caldo (uma água suja) de aspargos, beterraba (um primo distante do borsh), frango. Zero café, zero chá com cafeína.
     Uma dor de cabeça infernal abriu minha segunda semana depois de operada. Claro, abstinência de café. No dia que se seguiu, comecei a saber a hora que cada pessoa chegava em casa. Pelo olfato. Virei uma cachorra caçadora de trufas, pensava! Um amigo médico explicou que meu corpo estava em cetose, um estado metabólico induzido pela falta de carboidrato. Sim, eu sentia fome. Que era saciada rapidinho, com a porção que me cabia. E logo em seguida tinha fome de novo. Só que eu, a gordinha gourmet, não queria a mesma sopa da meia hora anterior. Isso transformou minha cozinha numa fábrica de caldos.
       Uns 20 dias depois do ato cirúrgico eu já estava subindo pelas paredes. Nem era tanta vontade de usar os dentes para os devidos fins. Mas de sentir algo mais consistente na boca. Reclamei tanto que fui autorizada a bater a sopa e a coar. A vida, aos poucos, foi ganhando corpo: cremosa, pastosa e, enfim, sólida.

DEPOIS
      Aos pouquinhos, fui tentando coisas "novas". E tudo foi ganhando outra dimensão. O que antes eu comia na maior tranquilidade deixou de ser assim. E, graças: o inverso também. Descobri que desidratação dá, antes de mais nada, um baita enjoo. Uma náusea me acompanhou várias manhãs, até eu descobrir o melhor antídoto: frutas. Cheias de líquido e açúcar, elas se tomaram, como nunca antes nos meus 44 anos, apetitosas. A sensação de bem-estar que se segue a uma boa salada de frutas, hoje em dia, é impagável. Se me dissessem isso há seis meses (eu operei há quase cinco), eu chamaria a pessoa de louca. Nunca fui fã de frutas: só de manga, banana e fruta-do-conde. Aquelas que os endocrinologistas não recomendam em suas dietas.
      A mudança mais radical de todas passou a ser a potência dos sabores. Alimentos de sabor forte e intenso passaram a não me enlouquecer, como no passado (nem tão distante). Iguarias defumadas, por exemplo, não rolam. Têm sabor acentuado demais. Comer virou uma experiência muito mais intensa Que não termina quando eu engulo. Hoje em dia, ao colocar um pedacinho de qualquer coisa na boca, sou capaz de lhe dizer se aquilo vai ou não cair bem no meu estômago, essa coisinha pequetita. E quando digo "cair bem" é de modo literal.
       Pães, uma das minhas maiores perdições, perderam boa parte de sua graça. Eu tentei, confesso. Passei a La Motte (já provou?), uma manteiguinha com sal marítimo, num pedaço de pão  francês quente. O sabor na boca era o mesmo, explosivo, reconfortante para a alma. Fiz, como recomendou a nutricionista, uma papinha na boca e engoli. A primeira dentada desceu bem. A segunda também. Pois bem, a terceira parou no meio do caminho, como se eu tivesse comido um pedaço grande de carne assada, seca, sem molho. Estacionou e puxou o freio de mão. Ato reflexo: tomei um belo gole d'água. Catástrofe: em vez de o líquido me ajudar, me afogou. Comecei a salivar em quantidades industriais. Pavor, suor frio, sensação de sufoco. Ruim o bastante para não querer repetir a experiência.
       Meu cérebro passou a registrar de forma rápida e esperta tudo o que me dá prazer. E não são, necessariamente, as mesmas coisas de antes da cirurgia. Por exemplo, toda vez que monto meu prato, incluo vegetais. Eles não passaram a ter um sabor sensacional, mas segregam água, que me ajuda na "descida" do alimento. Carnes, só as bem ensopadas, molhadinhas. Gordura, só o essencial. Ainda AMO pastel. Só que não como mais ele inteiro (ok, eram dois de feira). Um terço agora me satisfaz. Fina, né?
    Não estou aqui fazendo apologia da cirurgia. Porque só eu sei o que passei no pós-operatório. E o medo que tive: o que faria com o tempo livre? Porque vamos combinar uma coisa: é matemático. Eu gastava muito mais que o dobro do que hoje com refeições e afins. O que faria para me divertir com tanto tempo de sobra? Até o presente momento, tenho me distraído bastante. Perdi 29,5 quilos e um guarda-roupa, o que me levou ao maravilhoso mundo das compras. Fazia anos que não conseguia comprar peças no Brasil, país onde as gordas só usam tecido estampado escuro e de fibra sintética. Ai, credo! E ainda como. Ontem mesmo. Comi uma bombinha incrível, recheada de creme, com cobertura de chocolate meio amargo belga. Só que eu comi uma. Todo mundo comeu de duas para cima. Ela era pequeninha, coisa de 4 centímetros. E me satisfez.

    (Por  Patrícia Hargreaves, revista LOLA, abril  de  2012)