terça-feira, 13 de março de 2012

ESTA MULHER BALANÇOU A JUSTIÇA BRASILEIRA

     Foi  assim  que a jornalista Patrícias Zaidani  entitulou a reportagem/entrevista que fez com a corregedora do Conselho Nacional de Justiça, Eliana Calmon, no dia mais tenso da sua carreira. Em Brasília, responsável pela maior investigação sobre juízes corruptos que o país já viu, ela enfrentou um clima de decisão de campeonato às vésperas de o Supremo Tribunal Federal  arbitrar o destino de sua luta no dia 02 de fevereiro deste ano.

     Certamente o dia anterior ao 1º de fevereiro foi o mais longo, angustioso e tenso para Eliana Calmon, a corregedora do Conselho Nacional de Justiça, pois aguardava o desfecho do maior embate protagonizado em 40 anos de carreira. Estava nas mãos dos 11 juízes do Supremo Tribunal Federal, o STF,  a sequência da caça aos juízes e servidores corruptos ou sem ética, que ela iniciara a um ano atrás.  Se a primeira mulher a chegar a uma corte superior (ela também é ministra do Superior Tribunal de Justiça) fosse derrotada, estaria
terminada a sua tentativa de dar transparência ao poder mais fechado do país.
      “Era um momento histórico, pois desde a redemocratização do país, ninguém havia chacoalhado tanto o Judiciário, apontando o dedo para o compadrio de desembargadores suspeitos de encobrir erros (e até crimes de colegas e para transações milionárias e inexplicáveis no setor. O pandemônio ferveu ainda mais quando Eliana disse ver "bandidos escondidos atrás da toga".
    A tensão era tanta, que somente no final da rade ela percebeu que saíra de casa com a blusa do lado do avesso!  Com a agenda sobrecarregada, precisou atender um grupo de advogados enquanto era maquiada para as fotos da entrevista, feita entre o seu gabinete e o apartamento onde mora.
      Eliana Calmon é um mulher intensa, cheia de curiosidades e alguma contradição, como se pode ver pela entrevista.
     Nascida em Salvador, num bairro de classe média, estudou num colégio de irmãs ursulinas, cuja rigidez a tornaram severa. Gostava de declamar poesias e discursar, um prenúncio do futuro. O enorme contingente de pobres, de negros e o  preconceito mexeram com os sentimentos de Eliana e ela entrou para o movimento Bandeirante para prestar algum serviço à comunidade. Isso foi formando seu ente de razão para acreditar que, como advogada, faria coisas para mudar o quadro.
      Após a formatura, casou e teve de ir com o marido para Natal, onde se tornou professora universitária. Depois, passou no concurso para  procurador da República, mais tarde para juiz federal e voltou para a Bahia, onde ficou dez anos. O marido, oficial da Marinha, estava na reserva e a seguiu. Já  tinham um filho (o advogado Renato, 32 anos, casado, que trabalha na Procuradoria-Geral da República).
Tem um neto, pelo qual é apaixonada.
      Seu casamento não teve muito romantismo,  mas ela acreditava mesmo que casamento era  para durar. Acabou 20 anos depois, pois não foi uma boa relação. Fazendo uma análise racional, conclui que sua geração foi sacrificada, pois o homem não aceitava uma mulher com poder e ganho maior. O marido era dez anos mais velho; achava que havia dois homens em casa. Até  ajudou na carreira, mas na hora H não entendia que ela fosse de opinião. Tentou levar em frente, dedicando-se  ao estudo e ao trabalho duro, alienando-se da relação. Ter sido mal-casada foi uma das razões do seu sucesso profissional. Até que aproveitou a volta para Brasília, como desembargadora federal e pôs um final no casamento.
     Quanto à possibilidade de um novo relacionamento, considera difícil pelo tipo de vida agitada que leva: "Precisaria ser um homem muito antenado e bem-disposto... Quando deixar a corregedoria, em setembro, volto para o STJ para continuar a julgar. A rotina ali é dura para um homem acompanhar. Além disso, o brasileiro gosta das novinhas. E a mulher intelectualizada termina sendo complicada, com um universo grande, cheia de vontades. Estou há muito tempo sozinha. Com muita ousadia. Então, fica difícil."
        Quando começou a enfrentar o Supremo, foi considerada louca, mas não desistiu ampara da no fato de que estava  lutando por  suas convicções, sem querer  agredir a magistratura nem se promover. Não se posiciona como  inimiga  do ministro Cezar Peluso (presidente do STF e do CNJ). Só pensa diferente.
        Em setembro de 2011, uma entrevista em que falou dos bandidos de toga, levou Peluso a fazer um a moção de repúdio a Eliana e a guerra começou. Pediu para retirar o que dissera e ela  respondeu:"Não retiro, disse o que penso".
     A solidariedade de pessoas humildes levam-na a supera as  acusações pesadas. Meu sono some - a insônia está séria há meses. A segunda reação é telefonar à noite, ou a qualquer hora, para meus juízes auxiliares (três estão ligados a ela, além de um assessor). Minha vitória ou derrota é deles também. Meus juízes ouvem e me aconselham.
       Confessa que teve vontade de reagir às acusações do ministro Marco Aurélio Mello, que concedeu a liminar contra o CNJ e ali a acusava de rasgar a Constituição, mas conseguiu se  segurei.
      Segundo ela, “A Justiça se moldou a um país de elites aristocráticas. Era uma Justiça para atendê-las. A Constituição de 1988 recortou a ordem jurídica por inteiro e o Brasil mudou. Mas nós, os magistrados, não mudamos de modelo. Cremos que não temos de dar satisfação. Prestamos a Justiça que queremos. Esse pensamento não cabe na sociedade de hoje, que reage rápido. Não tenho Facebook nem tuíto, mas algumas vezes entrei para ver o apoio que davam à minha tese. Não faço isso sempre para não ficar vaidosa.
      Diz que os juízes podem correr o risco de se achar um Deus pelas funções que exercem e têm de tomar cuidado com isso. Embora tenha tido o apoio de importantes políticos para chegar ao STJ, não se considera com a obrigação de lhes prestar favores, como é um hábito na política brasileira.
     A desonestidade dentro da justiça não é um número enorme. Dos 16 mil juízes, só 1% se envolve com más práticas. Mas o estrago que eles fazem, no entanto, é enorme. Só se pode virar  o jogo punindo quem atropela a ética.
      Já se viu obrigada a punir dois colegas, no STJ. Um foi meu amigo por anos. Os filhos me chamavam de tia. Ficava com os autos na mão procurando algo que o inocentasse. Mas era culpado. Entrei em parafuso, achei que não podia ter julgado contra ele. Não havia outra coisa a fazer.
    Sobre sua atitude ao dar uma caminhonete blindada, de um traficante para uma juíza ameaçada de morte, em Pernambuco, disse que é preciso proteger os juízes que trabalham e se arriscam. Tem distribuído a tribunais de muitos estados carros e aviões apreendidos com traficantes, que apodreceriam no pátio, dando  um destino mais útil a eles.
      Declara-se a favor da lei que descriminaliza o aborto, mas acha que vai demorar muito, pois a cultura religiosa é muito arraigada no Brasil.
        Curiosa por vê-la usando figas num colar e pela quantidade de santos no seu gabinete e em casa, a repórter quis saber como administrava tantos credos. Como toda baiana. Isso aqui (com a mão na gargantilha) enfrenta tudo. No corpo fechado, não entra espírito de porco. Sou agnóstica, mas, se há bruxas, o patuá me protege delas.  Quanto aos santos, diz que gosta de colecioná-los desde a época em que era católica.
        Sobre o seu livro REsp- Receitas Especiais, explica que é um livro artesanal, com 457 receitas de salgados e doces. Lançou  a nona edição em janeiro (a venda se dá entre amigos; o dinheiro segue para uma creche mineira). Nele  fala de pratos simples, pois desde pequena ia com a mãe às aulas de culinária, copiava as receitas. Achar cozinhar fantástico: une as pessoas, muda o humor.
         Durante a entrevista, a TV anunciou que o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, arquivara a representação criminal contra ela, movida por associações da classe, considerando não haver provas de que tivesse quebrado o sigilo bancário dos juízes. Foi um alívio para Eliana, mas a  agonia da ministra se prolongou um pouco mais, até 2 de fevereiro, quando, em votação apertada, o Supremo decidiu que o CNJ tem poderes, sim, para investigar juízes.
        Eliana Calmon estava em casa vendo tudo pela TV. Não é de chorar, mas chorou ao ouvir o último voto. Com enxaqueca, tomou um remédio e, finalmente, conseguiu dormir. Vitoriosa.
                                                                                 (Revista CLAUDIA, março de 2012)

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