quinta-feira, 8 de março de 2012

AS JAPONESAS APRENDERAM A DIZER “NÃO”

    Um sinal dos novos tempos é que as japonesas, tradicionalmente dedicadas ao casamento e à família, estão rejeitando o casamento. “Elas desejam viver a vida, ganhar mais dinheiro, estudar e se livrar dos maridos que não fazem o trabalho de casa”.   

      Fumika Matsumura, 33 anos, é uma viajante apaixonada. Formada em letras, funcionária de uma empresa de computadores, ela gasta quase todo o salário percorrendo lugares diferentes, estudando línguas, comprando cosméticos e roupas. "Adoro o jeans brasileiro. Valoriza o corpo", diz essa japonesa, fã também de samba. Já viveu na Austrália e nos Estados Unidos, esteve três vezes no Brasil e gaba-se de ter desfilado no Carnaval de São Paulo. Próximos projetos? "Viajar muito mais, morar um pouco fora do meu país." Fumika tem sede de conhecer e é rápida em afirmar que o casamento "tornaria seus planos impossíveis". Seu discurso soaria corriqueiro, se estivéssemos falando de mulheres ocidentais. No Japão, porém, a independência feminina, a autonomia financeira, o desejo de conquistar expressão na sociedade são novidade.
      Pouco tempo atrás, a idade de Fumika seria considerada tardia para arrumar um marido. Hoje, um terço das japonesas na faixa dos 30 está solteira e, provavelmente, metade permanecerá sem compromisso para sempre. No país, 21 % encenaram o período reprodutivo sem casar - em Tóquio, a taxa atingiu 30%. Os dados são do governo, que mostra ainda a idade média para o casamento: 29,5 anos. Nos anos 1980, era de 25,5. Quanto mais escolarizada e com dinheiro, menos a japonesa quer se amarrar. "Não me arrependo de nada do que faço. Se no futuro decidir escrever um livro, será repleto de grandes experiências", afirma Fumika.
       O que desmotiva a empreitada do casamento é o conceito de sengyoo shufu. Traduzindo: dona de casa em tempo integral. Faz parte da tradição que a mulher, ao ter um marido, abra mão da profissão ou priorize o cuidado com a família, incluindo no pacote sogro e sogra. Quem insiste em seguir na carreira trabalha 40 horas semanais e, no mínimo, mais 30 horas na lida doméstica. O marido, quando "ajuda", é por apenas três míseras horinhas a cada semana. A japonesa rejeita essa vida. Na visão da escritora Yoko Haruka, personalidade sempre presente na TV, o casamento é uma instituição falida no Japão e precisa de reforma urgente. "Se o filho é malcriado, a mulher é péssima mãe. Se o marido tem uma amante, é porque ela é uma esposa horrível", descreve. Autora do livro Keklwn Shimasen (Não quero me casar), Yoko sempre foi uma crítica do velho modelo. Ela abandonou um noivo ao ouvir o pedido para largar a profissão e virar esposa. Conta no livro: "Há homens que têm a cara de pau de dizer que sonham em ver a companheira cozinhando missoshiro, a sopa de pasta de soja, para o resto da vida deles. O japonês não vai mudar nunca". O alerta da escritora às suas leitoras é objeto de estudo do sociólogo Ângelo Ishii, professor da Universidade Musashi, em Tóquio: "Por mais que digam que a sociedade está mudando, que a nova geração pensa diferente, na média o homem japonês permanece careta e conservador. Espera que a mulher se adapte à necessidade dele".
       Hoje, a japonesa se divorcia mais. Um em cada três casamentos termina em separação, quatro vezes mais que nos anos 1950 e o dobro da década de 1970. Segundo o Ministério da Saúde, Trabalho e Bem-Estar, em 2010 foram registrados 253 353 divórcios e 708 mil casórios. Alguns casais até celebram a separação. O ex-vendedor Hiroki Terai inaugurou um serviço de festa de descasamento em 2009 e, desde então, o número de eventos se avoluma. "Principalmente depois do tsunami (em março de 2011), as mulheres passaram a rever suas histórias e decidiram recomeçar a vida", conta ele.
        CLAUDIA acompanhou uma dessas cerimônias. Keiko e Kenji optaram por algo simples, com poucos amigos. Depois de sete anos juntos, Keiko, 40 anos, se declarou cansada das farras do marido, que chegava bêbado quase todo dia. A iniciativa da festa foi dele. "Estou aqui como um último favor ao meu ex", diz a dona de casa. No final, não conteve as lágrimas. "É o fim", revela "Casar de novo? Não, nunca mais", enfatiza "Uma experiência já bastou. Agora vou estudar."
    Ambição profissional é uma das justificativas recorrentes. Sayaka Matsumura, 34 anos, irmã de Fumika, focou a ascensão. Há  seis meses, ela deixou o emprego numa empresa de publicidade em Tóquio para estudar mandarim em Taiwan, onde as oportunidades prosperam. "Em três anos, recupero o gasto desse período e consigo um bom emprego",  ela conta. "Quero crescer." O ideal de casamento perdeu terreno quando Sayaka, às vésperas dos 30 anos, descobriu um câncer de mama. "Percebi que desejava algo especial para o meu futuro, e isso incluía investir em mim", afirma ela, ainda em tratamento. Ajudou na mu- dança de rumo a reação fria do namorado. Pouco antes do diagnóstico, ele havia lhe proposto uma vida em comum. "Infelizmente, os homens japoneses não conseguem lidar bem com uma mulher doente." Só na próxima década Sayaka pretende incluir um par em seus projetos: "Espero por um homem que me apoie".
       Uma pesquisa do Instituto Nacional de População mostrou que 90% dos jovens de 18 a 34 anos até pensam em casar. Um dia. Masumi Oko, 34, integra o time. Sua família apela para que se apresse em achar um noivo. "Sou filha única, meus pais se preocupam, mas vou com calma", diz. Sua geração anda exigente. Formada em moda, ela produz roupas para os amigos. Completa a renda trabalhando numa clínica médica, faz curso de design, pratica montanhismo, snowboard, viaja. Recentemente, engatou um namoro - e o casal já discutiu o tema. "Digo que antes de me comprometer devo aproveitar um período sozinha. E ele também." Na verdade, a preocupação é maior: "O japonês trabalha muito, não tem tempo para dar atenção à família".

     Outro item na lista de direitos que as japonesas perseguem é o de decidir o tamanho da família: cada vez menor. Casando com mais idade e sabedoria, elas optam por menos filhos. Ou por não tê-los. Isso virou um problema social, com o aumento de dependentes do seguro previdenciário. "O novo comportamento provoca queda populacional, afetando o desenvolvimento do país, que já tem uma das taxas de natalidade mais baixas do mundo", explica Hideki Matsumura, economista do Instituto de Pesquisas do Japão. A economia fraca realimenta o problema: com o desemprego, a produção em baixa e a recessão, os casais protelam o casamento. "A renda dos assalariados vem caindo nos últimos 15 anos; assim, fica difícil pensar numa união estável", diz.
      O poder do dinheiro perturba os homens japoneses, que se sentem desconfortáveis ao lado de uma parceira que ganha mais. As mulheres andam recebendo holerites um pouco mais gordos e desejam um par com condição social superior. A estilista, colunista e estudiosa dos costumes Linda Kaori joga luzes na questão: "As japonesas acham que não compensa casar, cuidar da família e, ainda por cima, suar para garantir a segunda fonte de renda, então preferem ir à luta solteiras".
        Para o pesquisador Setsuya Fukuda, do Instituto de Pesquisas Demográficas Max Planck, da Alemanha, o governo japonês precisa criar políticas públicas que ajudem a família a equilibrar o trabalho e as obrigações com a casa - para tirar a sobrecarga que só pesa sobre o ombro da mulher. Aí, sim, lembra ele, a natalidade poderia voltar a subir. "O Japão precisa da mão de obra feminina. O governo tem tentado formas de facilitar a relação maternidade e trabalho, mas até agora não houve muito progresso."
       Fumika tem consciência de que o casamento tardio repercute na economia, na tradição, na cultura e na sociedade como um todo. Nem por isso sente-se culpada. "Entendo que faltam  crianças e que o número de idosos só aumenta. Daqui a algum tempo, não terá quem pague os impostos e a aposentadoria", diz. "Mas devo, e quero, tocar minha vida." As japonesas estão seguras de que, livres para decidir, podem ajudar o país a ser mais igual.
      E o vírus se espalha. O fenômeno não é exclusivo do Japão. Uma reportagem da revista britânica The Economist mostrou que as asiáticas, de modo geral, estão fugindo do casamento. Mesmo em países com culturas que defendem a união precoce, às vezes arranjada, e para a vida toda, as mudanças ocorrem. Taiwan, Coreia do Sul e Hong Kong seguem a tendência japonesa. Na capital tailandesa, 20% das mulheres de 40 a 44 anos estão solteiras e, em Cingapura, o percentual chega a 27%. Nesses locais, a taxa de natalidade cai: com valores arraigados, as mulheres não se arriscam a providenciar filhos sem pais. A produção independente não é bem assimilada e corresponde a 2% dos bebês, número pequeno se comparado à Suécia, onde 55% das crianças nascidas em 2008 foram concebidas fora do casamento.
 (EWERTHON TOBACE E THASSIA OHPHATA, DE TÓQUIO)

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