
Em
1894, nascia em São João da Boa Vista, pequena cidade a poucas horas de São
Paulo, a 17ª criança de uma prole de 19,
dos quais 11 sobreviveram. Era Guiomar Novaes, filha de um comerciante de café
e uma dona de casa. Naquela época, toda moça de boa família era obrigada a ter
aulas de piano. Enquanto as irmãs se esforçavam para aprender, ela tocava com
facilidade as peças que ouvia. Aos 4 anos, Guiomar já era extraordinária.
A última
década do século 19 foi um momento de enormes mudanças no Brasil, em especial
no eixo Rio-São Paulo. Com a abolição da escravatura e o final do Império, os
anos de 1890 se mostravam efervescentes. Chegavam milhares de imigrantes.
Crescia o número de jovens bem preparados para o mercado de trabalho e as
famílias dos barões de café cada vez mais se interessavam pela alta cultura europeia.
Foi o patriarca de uma dessas famílias que trouxe da Suíça o pianista e
professor italiano Luigi Chiaffarelli. Ele conheceu Guiomar quando a menina
tinha 7 anos e logo identificou nela um talento raro. Em pouco tempo, a garota
prodígio estava dando concertos. Chamou tanto a atenção que foi levada à Europa
por uma dama da sociedade paulistana, Alda Prado. Antes de embarcar, porém, fez
um conceito de despedida. Na plateia estava o adolescente Octavio Pinto, colega
nos estudos do instrumento, que olhava estarreecido e pensava: "Vou me
casar com ela". Guiomar tinha 13 anos. Ele, 17.
No
Conservatório Musical e Dramático de Paris, 388 candidatos de todo o mundo
disputavam 11 vagas. No júri, compositores consagrados, como Claude Debussy e
Gabriel Fauré. "Imaginem aquele
júri, exausto e entediado depois de ouvir centenas de candidatos tocarem a
mesma peça, pedir a essa jovem para repetir a prova - para o próprio prazer!
Incrível", descreveu na época um crítico americano. Guiomar passou em
primeiro lugar. Uma carta de Debussy para o compositor André Caplet, descoberta
nos anos 1940, ficou famosa: "A
melhor foi uma jovem brasileira, que não é bela, mas tem os olhos ébrios de
música e a capacidade de se isolar de tudo à sua volta, como só conseguem os
grandes artistas". Mesmo fazendo aulas no conservatório com o renomado
professor Isidor Philipp, a pequena pianista mostrou ter estilo e personalidade
forte. Ela tocava uma balada de Chopin quando Philipp a interrompeu para fazer
uma correção.
"Compreendo", disse, e tocou tudo de
novo, da mesma maneira. Depois de uma nova repreensão, ela voltou a responder
"compreendo"... e tocou,
pela terceira vez, igualzinho. "Então
percebi que o jeito dela era muito melhor", declarou posteriormente o
mestre. Em 1911, Guiomar se formou também em primeiro lugar no curso e saiu em
turnê pela Europa. O sucesso trouxe muitos contratos de trabalho. Dois anos
depois, em férias no Brasil, reencontrou o colega Octavio Pinto, que sempre dava um jeito de estar por perto,
mas nunca se declarava abertamente.

Dez
anos haviam se passado desde que o adolescente Octavio decidira em pensamento
que a menina pianista seria sua mulher. O amigo compositor Francisco Mignone
garantia que ele se mantivera fiel todo o tempo. Naquele ano, não a procurou de
imediato, mas ficou por perto. A corte era delicada e constante:


Uma
das provas de seu prestígio foi o convite feito pelo governo inglês, em 1967,
para que protagonizasse o recital de abertura do teatro Queen Elizabeth Hall,
depois de uma ausência de 25 anos dos palcos britânicos. A última apresentação
fora do Brasil aconteceu em 1972, nos Estados Unidos, mas Guiomar não cogitava
um adeus. "Ainda quero tocar em turnês pela América do Sul, Estados Unidos
e talvez Japão", disse aos 78 anos. A saúde cada vez mais frágil não
permitiu que realizasse o desejo. Em janeiro de 1979, ela teve um AVC; dois
meses depois faleceu, vítima de uma parada cardíaca, sem ter voltado a subir
nos grandes palcos. Mas os amigos diziam que a alma e o coração dela já tinham
ido embora com Octavio, 29 anos antes, como Guiomar declarou ao jornal O Diário de Notícias, de 5 de setembro
de 1952: "Não fomos namorados e
noivos modernos. Vivemos um amor à moda de 1830 e nele encontramos encanto e
poesia até o fim, até nossa separação inelutável. Hoje só penso, só rezo, só
sonho por ele - mais que meu marido, meu companheiro de todas as horas. Nunca
pensei que Deus o tiraria de mim tão cedo. (...) Minha reação imediata foi
abandonar a música. Insistiram, todavia, comigo, amigos e parentes. A própria
memória de Octavio, talvez mais que tudo, ele me fez continuar a cultivar
aquilo que mais adorava - a minha arte. E nela encontro um grande
consolo". o
. LUCIANA
MEDEIROS é coautora do livro Guiomar Novaes do Brasil (Kapa Editorial), escrito
com João Luiz Sampaio. A obra acompanha dois CDs com concertos de Guiomar com a
Filarmônica de Nova York, lançada dia 27 de novembro de 2011, pelo Concurso
Internacional BNDES de Piano.)
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