sexta-feira, 4 de setembro de 2015

CEM ANOS DE UM MESTRE

   
 A arte não é para agradar, mas, sim, para emocionar. É uma janela que um pintor abre para outros homens, para mostrar um mundo que eles não veem, mas que precisam e devem sentir".
    Não foram poucas as janelas abertas pelo pintor italiano  Aldo Locatellí, autor da frase acima, durante seus breves, mas intensos, 47 anos de vida. São dele as pinturas que decoram a Catedral Metropolitana Nossa Senhora da Conceição, em Santa Maria, o Salão Negrinho do Pastoreio, no Palácio Piratini, a prefeitura e duas igrejas de Caxias do Sul, além de catedrais de Pelotas e Novo Hamburgo, a Matriz de Itajaí (SC), o Aeroporto Salgado Filho, a reitoria da UFRGS e a antiga sede do Citibank, em São Paulo, entre outras.
    Referência nas artes por obras que passeiam por temas religiosos, históricos e lendários, Locatelli tem seu centenário de nascimento come- morado na próxima quarta- feira, dia 18 de agosto. Nascido em 1915, em villa d'Alme, na província de Bérgamo, Itália, de chegou ao Brasil em 1948 - assim como os também artistas Emílío Sessa e Adolfo Gardoni -, para pintar as imagens da Catedral São Francisco de Paula, em Pelotas, a convite de dom Antônio Zattera, que havia conhecido o trabalho do mes- tre após viagem à Itália.
    No início dos anos 1950, começou os afrescos na Igreja de São Pelegrino, a mais visitada de Caxias do Sul, pintando a Santa Ceia - e, posteriormente, o teto e a Via Sacra, num trabalho finalizado uma década depois.
·   Nesse meio tempo, desenvolveu uma imensa gama de pinturas em. diversas cidades, principalmente gaúchas (mas não apenas nelas), além de lecionar na Escola de Belas- Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Na Capital, entre suas principais obras, estão os painéis do Palácio Piratini - entre eles, um de grandes proporções: A Formação Histórico~Etnográfica do Povo Rio-Grandense: (1955).

Traçado vigoroso
     Consagrou-se, sobretudo, como muralista, destacando-se com um estilo clássico, forjado com os ensinamentos dos renascentistas. Paulo Gomes, professor do Instituto de
Artes da·UFRGS, lembra que, mesmo em um curto período, seu estilo passou por diferentes momentos:
    - Sua obra tem variações. Ele começa com uma pintura mais acadêmica, no sentido de obedecer às regras, mas morre muito jovem. Se tivesse continuado, com certeza, teria deixado obras bem diferentes. O painel que está no Instituto de Artes é mais moderno do que os que estão no-Palácio Piratini, por exemplo.
    - Em termos de pintura sacra no Brasil, no século 20, Locatelli é um conjunto único, pois tanto em quantidade como em qualidade, não existe outro no Brasil que se compare - avalia o professor Amoldo W. Dobersteín, pesquisador do Instituto Cultural Emilio Sessa (ICES).
    Entre as características da obra de Locatelli, Dobersteín destaca seu traçado vigoroso e forte:
     - Entendo ser a característica que melhor explica os motivos de sua boa recepção entre nós, rio-grandenses. Este traçado combinou admiravelmente com os dois principais imagi-
nários que existiam, e existem, no Rio Grande do Sul: o gauchismo e o em- preendedorismo colonial.

     Para quem conviveu com Locatelli, a experiência foi marcante. A artista plástica Clara Pechansky o conheceu em Pelotas, aos 15 anos, quando estudava Belas Artes. Ao ver seu trabalho, o pintor gostou e a autorizou a desenhar seus modelos. Clara diz ter aprendido com o mestre a ter disciplina de trabalho, a manter o material sempre em ordem e a não esperar por inspiração, mas ter horário para trabalhar. Anos mais tarde, quando ela se mudou para Porto Alegre, procurou o mestre.
      - Ele me convidou a frequentar seu ateliê: Eu ficava pintando enquanto ele trabalhava nas telas (da Via Sacra) para a Igreja de São Pelegrino -lembra.
     Tanto nas igrejas quanto em outros locais que pintou, e ainda nas diversas telas que estão no Museu de Arte do Rio Grande do Sul (Margs) ou em coleções particulares, o talento de Locatelli é inegável. .E ele poderia ter ido ainda mais longe, avalia a pesquisado-
ra caxiense Vera Zattera, uma vez que esse talento estava no auge quando ocorreu sua morte prematura, vítima de câncer, causado possivelmente pelos químicos das tintas.

VIDA  E  OBRA  DE  ALDO  LOCATELLI
1915 - Aldo Locatelli nasceu em 18-08-1915, em Villa d’Alme, na região de Bérgamo, Itália, filho de Luiggi e Anna.
1925– Aos 10 anos tem contato com artistas que restauraram os murais da igreja de sua cidade natal, despertando, assim, seu interesse por essa arte.
1931 - Aos16 anos, inicia sua formação em Bérgamo. Anos depois, ganha uma bolsa de estudos para a Escola de Belas Artes de Roma, onde  estuda as obras de Michelangelo, na Capela Sistina.
1943 -1945 -  Faz sua primeira grande obra, mais de 30 afrescos na igreja paroquial de Santa Croce, ainda na província de Bérgamo.
1946 - Casa-se com Mercedes Biancheri, a 27 de abril. No mesmo ano, inicia estudos para restaurar os murais do Santuário de Pompeia.
1948 - A convite de dom Antônio Zattera, bispo de Pelotas, chega ao Brasil em 1º de novembro, para pintar a catedral da cidade. Tem como parceiro Emílio Sessa (que também o acompanha em trabalhos em Caxias do Sul e Santa Maria. Pinta o mural A Conquista do Espaço e o óleo sobre tela Epopeia da Vida, no Aeroporto Internacional Salgado Filho
1950 – 1953 - Instala-se definitivamente em Porto Alegre, onde mantém um ateliê e leciona no Instituto de Belas Artes. Pinta a Santa Ceia, na Igreja  São Pelegrino, em Caxias do Sul, e a tela Natividade, para o altar da capela das Irmãs Carmelitas, também em Caxias. Inicia a pintura de vários afrescos no Palácio Piratini, em Porto Alegre, entre eles A For-
mação do Estado do Rio Grande do Sul, Vida na Estância e outros - alguns em cores, alguns monocromáticos, retratando a lenda do Negrinho do Pastoreio, concluídos em 1955.
1951- Pinta afresco na igreja do Santo Sepulcro e o Juízo Final no teto da Igreja São Pelegrino, em Caxias do Sul. Nos anos seguintes, outras pinturas serão acrescentadas nessa última, incluindo Senhora do Caravaggio, São José  e o Dies lrae (este, no teto), entre outras.
Inicia a pintura da Igreja de Santa Terezinha, em Porto Alegre.
1954- Pinta  a Catedral Nossa Senhora da Conceição, em Santa Maria, o mural Do Itálico Berço à Nova Pátria Brasileira, no pavilhão da Festa da Uva (hoje  prefeitura de Caxias do Sul).
1958 - Pinta painéis no Instituto de Artes e no Salão do Conselho da Reitoria da UFRGS. Faz várias pinturas da Catedral de Itajaí (SC), na Igreja do Santíssimo Sacramento e na Catedral São Luiz Gonzaga, em Novo Hamburgo. Depois, pinta a capelinha do Colégio Anchieta, em Porto Alegra. Começa a pintura, em seu ateliê, das telas da Via Sacra de São Pelegrino (concluídas em 1960).
1960 - Pinta o óleo sobre tela a Fundação de Rio Grande, na Fiergs. Conclui a pintura da Igreja Nossa Senhora de Lourdes, em Porto Alegre.
1961 - Pinta um retrato de Xico Stockinger que, em troca, faz jm busto do artista. A escultura está exposta no campus da Universidade de Caxias do Sul (UCS).
1962 – Morre em Porto Alegre, a 3 de setembo.
1964 – É fundada A Sociedade Cultura e Arte Aldo Locatelli (Scala), em Caxias do Sul, para preseservar o legado do artista
1974 – É inaugurada a Pinacoteca Aldo Locatelli, em Porto Alegre.

   HOMENAGEM  A  NOSSA  SENHORA  EM  SANTA  MARIA

A curta passagem de Aldo Locatelli por Santa Maria contrasta com a grandeza do conjunto deixado por ele e por Emilio Sessa na Catedral Metropolitana Nossa Senhora da Conceição, na Avenida Rio Branco. Os afrescos foram pintados entre janeiro e dezembro de 1954, durante a segunda grande reforma do templo, determinada pelo monsenhor Frederico Didonet, então pároco da Catedral.
    A obra é dividida em quatro grandes painéis, que se espalham ·no teto da nave principal, desde o coro até a abside (espécie de cor- redor semicircular na parte lateral e posterior do altar-mor). O tema exalta passagens da padroeira: o momento em que Maria recebe a visita do anjo Gabriel; Maria aos pés da cruz, no Calvário; a assunção de Maria ao céu e a coroação de Nossa Senhora. Ao italiano Emilio Sessa coube pintar detalhes nas colunas e medalhões com inscrições em latim que reproduzem trechos da Ladainha de Nossa Senhora.
    Há poucos registros guardados sobre a passagem de Locatelli em Santa Maria. O contador e empresário Guído Isaía, 77 anos - filho de Salvador Isaía, um dos integrantes da comissão responvel pela segunda reforma em 1954 - lembra de ver o italiano em almos na casa de sua família. Locatelli tamm era amigo de seu avô, José, que havia sido cônsul da Itália.
    - Eles conversavam bastante em italiano, trocavam ideias. Lembro que ele também frequentava a nossa casa em Itaara naquele tempo -conta Guido que tinha entre 12 e anos na época.
Guido conta também que Locatelli gostava de pintar à noite, deitado sobre os andaimes. De acordo com o padre Antônio Bonini, cura emérito da Catedral, por conta da
falta de espaço na casa paroquial, Locatelli ficou hospedado no Colégio São Lu
íz, dos Irmãos Maristas, onde funcionou a Escola de Artes e Oficias (hoje supermercado Carrefour). Na antiga capela (hoje, uma cafeteria), foi pintado um painel. Mas não há confirmação se ele foi pintado por Locatelli ou por Emílío Sessa, artista que o acom-
panhava nos trabalhos
.
De acordo com a portaria que que criou a comissão encarrega- da de supervisionar os trabalhos de pintura na Catedral, transcrita no Livro Tombo nº VI da Paró-
quia Catedral, foram pagos Cr$ 700.000,00 (cerca de R$147,6 mil) pelas pinturas, sendo que Aldo Locatelli, chamado de figurinista, recebeu Cr$. 250.000,00 (cerca de
R$ 52,7 mil), enquanto Sessa, caracterizado como decorador
, ficou com Cr$ 450.000,00 (R$ 94,8 mil).
Para que Locatelli pudesse criar os afrescos, também foi necessário substituir o forro de madeira por um de estuque, tipo de argamassa feita de pó de mármore, cal fina, gesso e areia, e com a qual se cobrem paredes e tetos. Os andaimes foram removidos no dia 27 de novembro de 1954, após a conclusão das pinturas.



              (Jornal DIÁRIO DE SANTA MARIA, agosto de 2015)

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