terça-feira, 15 de setembro de 2015

LEITURA E LIBERDADE

     
 
 Se eu fechar os olhos agora, ainda posso ouvir minha avó lendo para mim um conto de capa e espada, uma caçada a um dragão ou as peripécias de um pirata inglês fugindo da Armada espanhola no mar do Caribe. Eu nem sabia ler ainda, mas a ideia de pousar os olhos naquelas páginas e encontrar aventura, suspense e emoção me impelia a querer dominar logo a sopa de letras que me intrigava. Alfabetizar-me era ter acesso a um repertório infinito de sensações.
    Tenho -pena dos que não gostam de ler. Mas tenho mais pena ainda dos que não conseguem ler. Se aqueles estão voluntariamente privados do hábito da leitura, a estes foi cruelmente surrupiado o prazer inebriante da fabulação escrita. O educador Rubem Alves corita que Cem Anos de Solidão lhe produziu espantos e ataques de riso. Para ele, entrar em contato com a literatura de Gabriel García Márquez era experimentar o assombro de um mundo fantástico sem precisar se drogar. "Quem lê não precisa cheirar pó", concluiu.

    Esse torpor que a literatura provoca só pode estar mesmo ligado ao prazer. Ler não deve ser castigo jamais. Jorge Luís Borges dizia que há tantos livros deliciosos para serem lidos que não vale a pena ler os que não são prazerosos. Ler me torna livre inclusive para não ler. Nisso tenho a companhia de Fernando Pessoa: "Ai . que prazer/o cumprir um dever/Ter um livro para ler/E não o fazer". Mas só sou livre, de fato, se o ócio for uma escolha, se o deleite de uma nova história me for possível assim que eu desejar. -
   Trata-se de uma monstruosa violência manter milhões de pessoas afastadas das possibilidades que a leitura oferece, os chamados analfabetos funcionais. São indivíduos que, embora reconheçam as palavras, não conseguem compreender nem interpretar um texto. O IBGE considera analfabetos funcionais os adultos que. têm menos de quatro anos de estudo.Por esse critério, 20% da população  seriam de analfabetos funcionais. Mas pesquisas mais aprofundadas, com critérios mais rígidos e específicos de apuração de capacidades, feitas pelo Instituto Paulo Montenegro e pela ONG Ação Educativa, apontam que 75% da população seriam de analfabetos funcionais. Ou seja, de cada 4 brasileiros, 3 não conseguem compreender e interpretar um texto mais complexo.
     Qual o impacto dessa tragédia cultural num ambiente de novas plataformas de leitura, em  que a escrita telegráfica domina os dispositivos móveis digitais? Não vejo políticas públicas apontando para o direito fundamental de ter acesso ao prazer da literatura. Uma nova campanha abolicionista, contra a escravidão da ignorância e pelo direito de compreender um texto escrito é a tarefa de todos os que se envergonham de viver num país de iletrados à força.
                   (Marcelo  Canellas – DIÁRIO DE SANTA MARIA, 13 de setembro de 2015)




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