Ainda que o saco de frustrações, troncho
e disforme, nos dê um trabalho enorme para carregá-la, o futuro nos afaga. A ilusão
do recomeço nos municia de esperança, corno se a folhinha rasgada do dia 31 de
dezembro nos oferecesse magicamente as possibilidades que já tínhamos. Que mal faz
o doce autoengano do Ano Novo?
Por mim, me bastaria um ano que começasse
corno naquela letra antiga - acho que do Walter Franco - que, na simplicidade
de seus quatro versos, faz às vezes de um mantra benfazejo, ou de urna oração
hippie em desuso, ou de urna maneira de viver fossilizada pelo ritmo frenético
da vida digital que nos tira o descanso e a paz: Tudo é urna questão de manteria mente quieta/a
espinha ereta/e o coração tranquilo".
Desejo para mim e para os outros a mente
quieta dos mansos, dos lúcidos, dos que interpretam as incoerências da vida
entendendo suas contradições sem aceitá-las. Mente quieta nada tem a ver com
sub- missão, É de serenidade que falo, pré-condição que elucida o caos e nos
deixa no prumo da razão. Mente quieta para discernir, compreender e intervir
sem oprimir-se. Mente quieta para estar bem e contagiar os outros com esse
estado.
Desejo também a espinha ereta dos altivos,
dos que não fazem concessões ao malfeito, ao logro, ao dolo. Quero manter
sempre a dignidade das minhas convicções, e só transigir se for convencido
pelas ideias e pelos fatos, nunca pela chantagem, pelo dinheiro, pelas
vantagens espúrias, pelas conveniências. Que minha espinha mantenha-se sempre
ereta para olhar meus filhos nos olhos, sem jamais sentir vergonha de mim. E
quando eu errar, que ela esteja ereta inclusive para que eu reconheça que
errei.
Que a calma pulse em meu coração. Mas não
a calma dos omissos, a falsa calma dos procrastinadores, dos que jogam o que é
feio para debaixo do tapete. Quero a calma dos inquietos, dos inconformados,
dos que têm a consciência limpa dos atos concretos. O bem acalma o peito. O
coração tranquilizado pelo amor de urna mulher, pelo amor dos
meus
amigos, pelo sentimento do mundo, corno diria Drummond. Por falar nele, termino
esta crônica com os versos sábios do poeta: "Para ganhar um Ano Novo que
mereça este nome/você, meu caro, tem de merecê-lo/tem de fazê-lo novo, eu sei que
não é fácil/mas tente, experimente, consciente./É dentro de você que o Ano NOVO/ cochila e espera desde sempre."
(Marcelo
Canellas – Diário de Santa MARIA, 03/01/2016)
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