quinta-feira, 23 de julho de 2015

DÓI CONSTATAR QUE, PARA MUITOS, HÁ VIDAS MAIS VALIOSAS QUE OUTRAS

    Se você é daquelas pessoas que acha que os seus problemas são os maiores do mundo, leia esta reportagem e verá que existe gente vivendo em situação muito pior.

       A  pesquisadora paulistana Glenda Andrade, 28 anos, morou 45 dias num campo  de refugiados palestinos no Líbano. Ela conta como a experiência a fez repensar valores e mudar sua forma de vencer o mundo.
   “Poucas pessoas têm a força para manter a sua própria integridade se o seu estatuto social, político e jurídico foi colocado em questão (. .. ) Perdemos a confiança em s mesmos se a sociedade não nos aprova.” Foi com esse trecho do livro Tradições Escondidas, da cientista política alemã Hannah Arendt, em mente que cheguei ao campo de refugiados palestinos de Shatila, no Líbano. Viajei até lá para fazer uma pesquisa sobre , como parte do meu doutorado em ciências políticas. Muito além do meu estudo, queria ter certeza de que tinha conhecimento suficiente sobre as vítimas de guerra, o que passam e o que sentem. Por isso, achava importante me colocar na mesma situação delas. Sempre soube que essa experiência me mudaria para sempre. E foi o que aconteceu.
   Morei 45 dias em Shatila, campo criado em 1949 com o objetivo de abrigar os sobreviventes do norte da Palestina que fugiam da guerra árabe-israelense de 1948. Atualmente, o local, de 50 mil metros quadrados (o equivalente a cinco campos de futebol, em média), abriga 22 mil pessoas em construções precárias, muitas vezes construídas pelos próprios moradores. :ֹ a agência da Organização das Nações Unidas para refugiados palestinos no Oriente Médio a responsável pelo fornecimento de saneamento básico, saúde e educação Shatila. O estigma da violência pesa sobre o campo e sobre as pessoas. Não tinha como ser diferente comigo. Também pesou e doeu em mim. 
   Cheguei no dia 2 de fevereiro deste ano. Ao entrar no local, desviei de três ratos e vários sacos de lixo. Subi cinco andares de escada no escuro. A luz do celular me ajudou a não tropeçar. Finalmente, entrei no que seria o meu lar pelas semanas seguintes. Chamada de Guest House, a casa é mantida pela ONG Child. 
  Os meus primeiros minutos em Shatila foram o prenúncio do que viveria ali: uma vida extremamente difícil, cheia de limitações, como a falta constante de energia elétrica e a escassez de água doce - nas torneiras, só salgada; a potável precisa ser comprada -, mas, ao mesmo tempo, rodeada de pessoas incríveis. Seres humanos, como em qualquer outro lugar do mundo. Ou não, pois o que vi ali eram verdadeiros heróis. Pessoas com uma capacidade sobre-humana de manter sua integridade diante de todas as adversidades. E não são poucas. Para circular fora dos campos, os palestinos vindos da Síria precisam de um documento que custa 200 dólares.
  Sem dinheiro para pagar por ele, não deixam o local com medo de ser barrados nos milhares de check-points espalhados pelo país. Eles são proibidos de exercer determinadas profissões, como medicina e direito, não importa quanto estudem ou tenham experiência na área. Alguns refugiados trabalham nas ONGs que atuam dentro do campo ou nos pequenos comércios que se desenvolvem ali, mas não há oportunidade para todos. Em uma entrevista, perguntei a um homem como era a rotina dele.  A gente acorda e dorme, ele me disse.
 Como a maioria dos moradores, eu também não tinha um dia a dia definido. Às vezes, fazia entrevistas formais com líderes de associações e ONGs. Em outros dias, visitava diversas casas para conversar com os refugiados. Algumas eram apenas um cômodo com cerca de 10 metros quadrados, sem janela, onde moravam até oito pessoas. Elas me recebiam de braços abertos, me davam seu tempo. Em todos os lares, fui convidada a almoçar, jantar e tomar os chais (c, em árabe), mesmo que elas mal tivessem o que comer - alguns refugiados recebem uma ajuda financeira para a alimentação, mas ela não é suficiente.
 Foi exatamente nessas conversas que me dei conta da complexidade de uma vida no exílio. Foi aí também que percebi que, não importava quantos livros eu lesse, quantos relatórios eu analisasse, a realidade era muito mais dura. E o que mais me machucava é que ela não era dura para mim. Eu ficaria ali por apenas algumas semanas, mas e aquelas pessoas? Ter a certeza dos meus privilégios como ser humano em comparação a outros indivíduos que em nada diferem de mim dói muito. Dói porque me sinto impotente e, pior, porque não consigo entender a discriminação nem a falta de igualdade. Dói constatar que, para muitos, vidas mais valiosas que outras.
 Antes de ir para Shatila, já tinha aberto mão da minha vida no Brasil para apenas estudar o tema. Mas, depois de viver sob tantas limitações, você começa a se questionar e dar muito mais valor ao que tem. Passei a refletir muito mais sobre as nossas verdades absolutas, sobre os discursos que abraçamos, os conceitos que criamos e sobre o que consideramos comum ou mesmo “normal”. Não é normal que 22 mil pessoas passem a vida em um campo sem perspectiva de retorno para a casa delas. Não é normal não ter acesso à água doce. Mas a realidade é outra. O refugiado é considerado apenas uma vítima sem nome, sem história. E, com o tempo, é esquecido. Para o mundo, ele é inexistente. Problemas políticos causam danos humanitários irreparáveis.
     Mas aquando aceitaremos isso? Infelizmente, ainda não sei quanto podemos fazer o mundo mudar, mas eu, definitivamente mudei.

                                                  (Revista  CLAUDIA, junho 2015)



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