quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

A MANADA É PRA LÁ

   Tem gente me acusando de esnobismo porque não tenho Facebook e Twitter, nem gosto de bater perna no shopping ou tagarelar ao telefone. Esse é o problema: ir contra o senso comum hoje é considerado desaforo.
Por Martha Medeiros

 Vou manter o nome dele em sigilo, já que é um renomado cirurgião, mas vou delatar o crime: meu pai não tem celular. Em sua defesa, ele diz que pode ser encontrado no consultório ou em casa, esses dois telefones bastam, sempre bastaram. "Mas, pai, e se teu carro pifar no meio da estrada? E se te sentires mal durante uma caminhada na rua? E se te atrasares no caminho para buscar a namorada?" Ele é um homem moderno, aos 76 anos tem uma namorada, mas não tem celular.
    Eu ficava indignada por ele manter essa inacessibilidade. Parecia que ele estava querendo apenas ser diferente dos outros, e os diferentes sempre dão a entender que são mais evoluídos, que possuem uma sabedoria que nós, reles mortais, jamais conseguiremos atingir. Como ele pode prescindir de um aparelho imprescindível? Ora, imprescindível pra mim, pra você. Para ele, não é. Só então lembrei como também costumo ser patrulhada.
    Faz pouco tempo, uma amiga demonstrou uma irritação descabida comigo. Não entendi: "O que foi que eu fiz?". Ela disse que eu fazia isso só para me exibir. "Isso o quê, criatura?". Não conseguia adivinhar o que a magoava, até que ela esclareceu. "Você não tem Facebook nem Twitter para se sentir superior."
    Eu realmente não uso as redes sociais. Sei que tem Faces que divulgam frases minhas, e que há alguns perfis de pessoas que fazem de conta que sou eu, mas não sou eu. Não é para me sentir superior ou inferior: simplesmente não tenho tempo sobrando. Já é um esforço conseguir manter a caixa de e-mails razoavelmente atualizada, para que procurar mais encrenca na minha vida? Meu tempo ocioso é sagrado. Expliquei para minha amiga que não era nada pessoal, que ela relaxasse, mas aquele dia ela estava surtada pela TPM. O Face e o Twitter eram apenas os primeiros itens de uma longa lista que ela havia mentalmente preparado para me condenar à exclusão.
     "E quanto a não idolatrar a ajuda das empregadas, como qualquer outra mulher atarefada?" Não acreditei que estava tendo essa conversa. Lembrei que uma semana antes havia comentado que a hora mais feliz do meu dia era quando a empregada saía pela porta dizendo: "Até amanhã, dona Martha". É uma funcionária exemplar que está comigo há mais de 20 anos. Trabalha de segunda a sexta das 10 às 16 horas, e ainda vibro quando ela pede para sair mais cedo. Adoro escutar a porta batendo e a sensação de que estou sozinha em casa. Não me sinto confortável no papel de patroa. Jamais cogitaria que alguém trabalhasse para mim à noite ou aos sábados (já devo ter levado muita chibatada no tronco em outra encarnação). Preciso do serviço dela porque ainda tenho filhas morando comigo, um apartamento grande e tal. Mas chegará o dia em que, filhas no mundo e apartamento menor, ficarei no meu canto tomando conta de mim mesma. Minha amiga acha isso o cúmulo do esnobismo.
    "E sobre não gostar de bater perna em shoppping?" Ué, não gosto, é pecado? Vou quando tenho que comprar um presente ou quando preciso de algo específico, mas não me convide para uma tarde olhando vitrines. Experimentar roupas em cabine de loja me faz simpatizar com a morte.
     "Mas de dirigir você gosta, não gosta?"  Amo. "Mesmo com esse trânsito esquizofrênico?" Mesmo. "E vem dizer que não está bancando a diferente."
      Pelo andar da carruagem, eu sabia que a discussão iria acabar nos contos de fadas, e não demorou nada. Logo ela tirou da manga a vez em que contei que, quando menina, meu desenho animado favorito não era o da Gata Borralheira nem o da Branca de Neve. Sempre fui fã do Mogli. Minha amiga não se conforma até hoje. "Claro, a fanática pela vida na selva, a porta-estandarte da liberdade, só podia mesmo vibrar com um pirralho criado entre os bichos da floresta, sem pai, nem mãe, nem fada madrinha."
       Não resisti e, só para provocar, comecei a cantarolar a música do urso Balu: "Eu uso o necessário/ somente o necessário/ o extraordinário é demais/ o necessário/ somente o necessário/ por isso é que essa vida eu vivo em paz". Mogli me ensinou a diferença entre o dispensável e o vital, enquanto as princesas tentavam me empurrar goela abaixo que o certo era esperar (deitada e dormindo) pelo surgimento de um príncipe. Por pouco não caí nessa.
        Minha amiga tinha mais um item da lista que, segundo ela, me tomava um ser esquisito à beça. "E sobre viajar sozinha, quer me explicar?" Viajar sozinha é outra anomalia que ela não perdoa. "Não é possível que você goste. Confesse: você chora escondida no quarto do hotel. Ninguém pode considerar agradável senta num restaurante em Paris e conversar somente com seus botões."
      Bom, eu nunca escondi que me derreto por uma lua de mel: claro que a melhor coisa do mundo é viajar com o amor da nossa vida. Mas, se durante um período de entressafra, o amor da sua vida for apenas você mesma, vai ficar mofando em casa a troco de quê? Qual o problema de dar um giro por Roma, Nova York, Buenos Aires? Humm, já começo a ter ideias.
     O problema é que ir contra o senso comum é considerado um desaforo. Mulher tem que adorar falar ao telefone (detesto), tem que torrar o salário em bolsas e sapatos (prefiro colares e pulseiras), tem que ter lido e amado Cinquenta Tons de Cinza (há outras prioridades na minha mesa de cabeceira) e tem que sonhar em perder 2 quilos.
       Ufa, agora encontrei minha turma. Também sonho em perder ao menos 2.
       Todos nós somos diferentes e idênticos, dependendo do que se trata. Temos desejos e angústias parecidas, e desejos e angústias únicas. Uns são mais iguais que outros, uns são mais estranhos que os demais, e essa saudável miscelânea é que dá graça à vida. Não há mais sentido em falar em "rebanho", como se houvesse uma tribo hegemônica e o resto fosse periférico e marginal. Além do rebanho, há alcateias, cáfilas, cardumes, manadas, bandos variados que se frequentam  e se divertem mutuamente. Que ninguém se sinta ameaçado em suas convicções sobre o que é "normal". Tudo é normal, desde que não faça mal.  
        
                 (Revista LOLA, janeiro de 2013.)

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