terça-feira, 9 de outubro de 2012

SENHORA OU SENHORITA?


  Há mais tipos de relação entre machos e fêmeas do que supõe a nossa vã burocracia. Ficante, peguete, amasiada, amiga com benefícios, neossolteira ou sozinha como uma foca num farol do Alasca: vai tentar explicar isso no cartório e no guichê do hotel...
Por Ângela  Dip. 

   E aí? Como você está? Num relacionamento sério, divertido, enrolado, aberto ou chato pra caramba? Amantes à moda antiga ou num casamento moderninho? Namoro ou amizade colorida? Marido, esposa, amante, amasiada, peguete, ficante, namorido, amigos com benefícios, tico-tico no fubá and last but not least, como diria Didi Mocó: "É casada, solteira ou joga boliche?".
   Como nomear sentimentos e classificar vínculos interpessoais? Qual etiqueta colar? Nada mais instável que qualquer união! Então o que seria uma união estável? "Convivência duradoura, pública e contínua de um homem e uma mulher, com o objetivo de constituição de família." Mas tem também concubinato, união homossexual..
   Enfim, há mais relações entre machos e fêmeas que o Código Civil consegue legislar, conceituar ou prever! A tecnologia e a vida ordinária andam mais rápidas que a Justiça. Ou até mesmo que a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT). A cada segundo, novas categorias sexuais nos esfregam na cara que a única certeza é a cova. Ou a cremação, o congelamento... Ah, Meu Santo Antônio,  o que mais virá pela frente? Bem-vinda ao século 21! Definições e preconceitos out! Viva a diversidade! Abaixo os cadastros, cartórios e afins.
  Me causa mal-estar a objetividade limitante de uma dessas instituições versus a subjetividade humana e suas infinitas possibilidades. Odeio burocracia com todas as minhas forças. Como pessoa física sou ótima e divertida, como pessoa jurídica sou péssima e chata. Sempre fui avessa a rótulos, Desde pequena, quando me chamavam de menina, eu dizia: "Não sou menina, sou Ângela! ", Em ilusões de autonomia, eu seria uma criação de mim mesma e não uma estatística de arquivo. Ainda tenho carinho pelas minhas idiossincrasias e desejos secretos de que minha individualidade fantástica fique fora da vala dos comuns, mas meu narcisismo passa assim que entro num ônibus ou numa repartição gelada. A iluminação desses gabinetes parece que nos rouba a alma. Entre um carimbo e outro, só nos resta aguardar a senha e a voz do funcionário: "Por favor. complete o formulário, enfie sua viola no saco e dê lugar ao próximo da fila!". 

    Casada, solteira, divorciada ou viúva?
   Nasci antes da homologação do divórcio no Brasil. Enquanto você colocava um disco na vitrola, uma mulher desquitada era apontada na rua. Filhos de pais separados iam para a terapia.
    Hoje, se uma criança tiver os pais originais dividindo o mesmo teto, sofrerá bullying: "Como assim você não tem dois Natais, duas casas?! Seu pai não tem namorada? Sua mãe não casou de novo?". Uma vez "divorciada", para sempre "divorciada". A sombra desse antigo elo lhe acorrentará para sempre. Digamos que, após assinar o termo de divórcio. você tenha ido comemorar sua neossolteirice tomando um porre de coquetel de camarão vestindo uma desastrosa calça bag. Digamos que, desde a última aparição do cometa Halley, você esteja mais sozinha que uma foca órfã num farol do Alasca. Mesmo assim, nunca mais escreverá "solteira" no campo estado civil. E se o seu marido morreu há 15 anos e você nunca mais casou, prepare-se: a ficha do hotel em Las Vegas manterá o registro de viúva, por mais promíscua que você tenha sido na balada Sodoma e Gomorra da noite anterior.
   Minha amiga vive há dez anos com um cara casado. Enquanto a esposa dele viaja pelo mundo fazendo ioga, é ela quem cuida dos filhos dele. Como madrasta exemplar, ajuda no dever da escola do menor, acompanha a mais velha nas aulas de hipismo e cuida das crises asmáticas dos gêmeos. Junto com as crianças, herdou dois cachorros, alguns hediondos móveis de laca brilhante e uma empregada excelente que tem o péssimo hábito de falar mal da ex-patroa. Mas esse envolvimento familiar é tão prazeroso que ela nem liga para os olhares acusadores quando mostra seu documento de solteira ao lado do dele, de casado.
   Palavras, palavras. Relações de afeto, uniões de fato, intimidade, orientação sexual. Nada disso interessa ao papel.
  Talvez por isso casar de papel passado nunca tenha me interessado. Memórias remotas fundamentam minha descrença nos contos de fadas. Mal conseguia disfarçar minha indiferença aos preparativos de crochê e ponto cruz de uma prima entusiasmada com seu noivado. Roupas novas envelhecendo aprisionadas no baú de enxoval me causavam mais aversão que encantamento. E o meu futuro príncipe virou num algoz de terno e gravata no vaticínio de uma tia bruxa enquanto ela desossava um frango sob meu olhar de terror: "Quando você casar, vai ter que fazer isto para o seu marido!". O próximo dever conjugal, segundo ela, era dobrar lençóis com a precisão de um origami. Essas atividades imprescindíveis à rainha do lar e seu avental todo sujo de ovo me impressionaram negativamente com relação ao matrimônio. Fiquei tão traumatizada que, desde que saí da casa dos meus pais, nunca mais comi frango nem arrumei a cama. Até pouco tempo atrás, um avental seria uma camisa de força.
  A marcha nupcial tinha que ser lenta pela pompa e circunstância e pela bola de ferro imaginária que via as noivas arrastando até o altar. Casamento em latim significa "terreno com casa". Para mim o lar diet lar era prisão. A casa, uma espécie de navio encalhado com uma âncora fincada no jardim de formiguinhas e cocôs gigantes. Contrair matrimônio era contrair alguma doença contagiosa.
  "Eu vos declaro marido e mulher." Implico com o fato de um homem poder dizer "esta é minha mulher" na sala entre convidados, enquanto a mulher só diz meu homem na cama entre quatro paredes. Antipatizo com as palavras esposa e marido. Namorado é mais romântico e significa estar em amor. E não é que esposas em espanhol quer dizer "algemas"? Para o bem e para o mal... A fonética também é profética: "es" tem som de "ex". E quando termina a "ex-posa" começa a "ex-mulher" que nunca acaba. E aquele seu namorado que de noivo virou marido transforma-se para sempre no pai dos seus filhos. Eu teria me casado se tivesse tido filhos. Nessa condição, pais viram parentes e o relacionamento fica sério. Tão sério que alguém sai em busca de diversão e acaba se separando. Tudo é tão efêmero que o fato de a aliança ser colocada no dedo "anular" já nos diz algo. Diante do padre é "até que a morte os separe". Diante do juiz é "até que o próximo casamento nos separe".
   Ainda assim adoro a celebração das festas de casamento! Onde mais você vai dançar impunemente I've Got You under My Skin com seu eleito?
   Já conjuguei a segunda pessoa do plural na beleza e na feiura; na pobreza e na fartura; na magreza e na gordura; no silêncio e na conversa. O convívio conjugal amoroso e "duradouro" pode ser um dos melhores processos civilizadores! A aventura da vida de par em par tem me deixado mais fortalecida e sábia. Nunca me casei de fato, mas vivo casada de direito. E tenho a convicção de que uma mulher casada de direito tem o dever de praticar sua solteirice de fato vez por outra: ir ao cinema abraçando apenas um saco de pipocas extralarge; alugar uma cadeira na praia para ler um livro e a paisagem pelo tempo que o protetor solar durar.
    O "x" do meu estado civil marca solteira. Mas de manhã cedo, agarrada ao travesseiro, sou viúva. Com as amigas num bar, uma mulher é sempre solteira. Sozinha na reunião de pais: divorciada. De madrugada, sufocada entre um braço e uma perna, casadíssima! E aí? Como você está agora? Casada, solteira, divorciada ou viúva? 

(Revista  LOLA, setembro de 2012.)

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