sábado, 1 de setembro de 2012

O BOBO DE CADA UM


  Deveríamos dar mais ouvidos à sabedoria que provém da intuição que sobra aos loucos e tolos - uma voz quase sobrenatural que possuímos mas preferimos ocultar sob a lógica e o racionalismo.  Por Ronaldo Correia de Brito.
 
  Você acha que os bobos só falam disparates e nunca devemos considerar suas observações? Que é melhor obedecer à regra: a palavras loucas, ouvidos moucos? Se você acredita que apenas os homens sérios conhecem verdades e agem com discernimento, precisa rever a literatura e as histórias de tradição oral, em que os bobos e os loucos proferem sabedorias, montam estratégias, abrem os olhos dos aparentemente lúcidos. Aos racionais escapa a dimensão do que é perturbador e inacabado, o mais instigante da experiência humana. Aquilo que sobra nos bobos.
  Chamar atenção para a verdade e desmascarar o falso por meio de brincadeiras e absurdos não é tarefa simples; há quem prefira continuar na cegueira. Por isso, os bobos caíam na desgraça de seus patrões e da corte de bajuladores que os cercavam.
   Não sei se você gostaria de ter um bobo dentro de si debochando de suas mancadas e questionando seus acertos. Os bobos brincam com tudo, parecendo não levar nada a sério, ao contrário do Grilo Falante, aquele personagem da história de Pinóquio que enchia o juízo do menino de bons conselhos. A sabedoria dos bobos provém da intuição.
   Foi Carl Jung quem identificou quatro funções psicológicas fundamentais: pensamento, sentimento, sensação e intuição. Segundo ele, toca ao pensamento e ao sentimento julgar e decidir. O intuitivo fareja possibilidades futuras e dá palpites; atua com os guardados do inconsciente. O "bobo da corte" seria um intuitivo.
    O problema é que nunca damos ouvidos a essa voz quase sobrenatural. Somos lógicos demais, cultivamos a razão como legado dos tempos modernos. Os bobos sofrem o mesmo descrédito de uma personagem da guerra entre gregos e troianos, Cassandra, a filha do rei Príamo, de Troia. Ela adivinhava o futuro, mas estava condenada por uma maldição: ninguém levava a sério o que dizia
     Aposto que você já presenciou conversas em que SI as pessoas comentam: "Não sei por que agi assim, g Eu tinha uma voz lá dentro, insistindo para eu não fazer dessa maneira, mas sou teimoso e nunca escuto essa voz. Aí me dei mal". Os bobos sempre simbolizaram as vozes reprimidas dos mais fracos. Serviram de motivo para  o teatro, a literatura e o cinema. Dom Quixote, o cavaleiro da triste figura, criado pelo espanhol Miguel de Cervantes, andava com um escudeiro apalermado, Sancho Pança, que muitas vezes tomava decisões no lugar de seu senhor. No teatro de commedia  dell'arte, os patrões tratam os criados como se eles não possuíssem inteligência, mas na verdade são bem espertos, movimentam o enredo e encontram soluções para todas as enrascadas dos casais enamorados. Porém, a trama mais bem elaborada sobre a relação de um rei com seu bobo está na peça Rei Lear, do inglês William Shakespeare.
     Lear decide repartir o reino com suas três filhas, pois se sente velho e cansado. Escolhe morar quatro meses do ano no castelo de cada princesa. A decisão parece insensata ao seu bobo e aos nobres fiéis. Leal' usa um critério arbitrário para dividir a herança: pede a cada filha que revele o quanto o ama. As duas filhas mais velhas se desdobram em afirmações amorosas. Cordelia, a mais jovem, não consegue falar de seu amor porque ele é mais rico do que sua língua é capaz de expressar.
    Essa modéstia enfurece o rei, que expulsa Cordelia de casa. Porém, muito cedo, ele irá conhecer a ingratidão das filhas que juravam amá-lo. Elas o desprezam e tramam sua ruína. Vagando sem pouso e na miséria, o rei enlouquece e seu bobo é quem o ampara e o traz à razão: "Estou melhor agora do que tu. Sou bobo e tu nada és", ele diz.
    Faltou intuição a Leal'. Se ouvisse os disparates do bobo, alertando-o de que o cérebro não fica nos calcanhares, não teria feito asneiras. Mas desconfia-se do que não parece lógico, teme-se a revelação de natureza inconsciente. O bobo e o rei trocam seus papéis: a razão enlouquece e a loucura adquire lógica. As nossas quatro funções não são estáticas, se alternam, crescem ou diminuem. É preciso ficar alerta: dentro de um rei mora um bobo. E vice-versa.
                         (Revista  LOLA,  julho  de  2012)

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