quarta-feira, 22 de outubro de 2014

O PASSADO, UM  PERIGO
O sonho do que poderia ter sido é sempre mais poderoso, porque nos permite imaginar.

       Outro dia, recebi  um e-mail de um antigo fã e bem que gostei. Quando nos conhecemos, houve uma certa paquera, mas não totalmente explícita (éramos muito jovens e ele era tímido). A vida nos levou por caminhos diferentes. Depois desse tempo, nos vimos algumas vezes e, em todas elas, nos olhávamos com um certo encantamento - e retomávamos nosso rumo, cada um para seu lado.
       Para muitas pessoas, é mais fácil escrever do que falar. Anos tinham se passado e só nesse e-mail ele disse, com todas as palavras, que havia desenvolvido um começo de paixão por mim, o que adorei. Adorei e respondi contando que, na época, desconfiei. Ele voltou citando um poema de Alberto de Campos (um dos heterônimos de Fernando Pessoa), Na Noite Terrível. Fui correndo procurar o livro na estante, mas não encontrei. Fui ao Google - santo Google - e achei logo, logo.
      O poema é perturbador. Fala de um homem que, em suas noites de insônia, pensa no que não fez e poderia ter feito; no que não foi e poderia ter sido. Pensa que, se em determinado momento tivesse virado à esquerda e não à direita, tivesse dito sim no lugar de dizer não, hoje poderia ser outro, e até o Universo poderia ser outro também.
  É claro que o texto me perturbou. É cruel pensar que nossa vida talvez fosse, hoje, outra.Que, se ouvíssemos mais - ou menos - nosso coração, encontrássemos mais coragem, sobre- tudo com apenas 20 anos, tudo seria diferente. Mas só sabemos disso muito mais tarde, e 20 anos só se tem uma vez, ai, ai.
 No caso em questão, não houve nada. Tentei lembrar de outros namoros que aconteceram mais ou menos na mesma época e dos quais, mesmo fazendo um grande esforço, mal me recordo. Namoros que na época deram até a impressão de ser amor, pelos quais eu até pensei que sofri e dos quais não lembrava nem dos traços físicos nem do nome. Isso sim é terrível.
   Que mistério é esse que faz as coisas que  acontecem ficar intactas na nossa mente e no nosso coração? Se tivéssemos iniciado um romance talvez houvesse restado uma dor, uma raiva, arrependimento. Mas o sonho do que poderia sido sempre mais poderoso porque nos permite imaginar, e a imaginação costuma ser melhor do que qualquer realidade.
     Meu ex-fã caiu na armadilha em que todos caímos às vezes, e que é um perigo; revolver o passado.  É como, num dia de chuva (e solidão), abrir aquele velho álbum de fotos. Lembrar dos momentos tristes é cruel, e dos momentos felizes também - nem sei o que é pior. Mas não caia na cilada: invente um cinema, vá fazer um bolo ou, na última das hipóteses, ligue a televisão e veja um programa qualquer, mesmo sendo de auditório em um sábado ou domingo. É apenas uma maneira de se proteger; pensar no passado é perigoso, porque ele não volta.
    Tudo que acontece na vida está preservado no fundo do coração. Essas lembranças são ex- clusivamente suas, fazem parte da sua história. Devem ser deixadas quietas, porque qualquer coisa que se refira ao passado dói. E um viva à tecnologia, que guarda num objeto minúsculo, o pen drive, todas as fotografias e canções de momentos importantes, mas que não conseguem nos emocionar tanto quanto uma foto bem antiga ou um disco de vinil.
     O dia está lindo; o céu, azul. E a vida está aí mesmo para ser vivida, sem ontem nem ama-nhã: só hoje, e agora.  

                                                                                (Revista CLAUDIA, outubro 2014.)

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