Especialistas
alertam que o excesso de mediação dos pais e da escola está privando as
crianças e os adolescentes de um importante aprendizado que é resolver os
próprios problemas. Por Paulo Camargo
A cena é cada vez mais comum. Basta a
criança discutir com um colega, receber uma crítica em classe, ser recusada na
brincadeira organizada por um grupo na hora do recreio ou ter uma vontade
repentina de faltar na escola e pronto: os pais já invadem a diretoria cobrando
providências. E chegam com o diagnóstico na ponta da língua: "É bullying!" De tão repetido
e debatido nos últimos tempos, o termo ganhou tamanha popularidade que virou
rótulo para qualquer situação de conflito no ambiente escolar, até para os pequenos
desentendimentos aparentemente normais ou aquelas piadinhas sarcásticas sempre
trocadas por adolescentes. Para o bem da garotada, esse não é o melhor dos
cenários, alertam alguns especialistas. "Considerar
que tudo é bullying é tão nocivo quanto achar que nada é", avisa o
psicólogo José Ernesto Bologna, de São Paulo.
Uma das primeiras a levantar essa polêmica
discussão foi a doutora em psicologia e pesquisadora inglesa Helene Guldberg,
autora de Reclaiming Childhood: Freedom and Play in an Age of Fear ("Reivindicando a infância: liberdade e
brincadeira em uma era de medo"). No livro, ainda não publicado no
Brasil, ela denuncia o florescimento, nos Estados Unidos e no Reino Unido, do
que chama de "indústria do bullying".
O fenômeno teria encontrado terreno fértil
para crescer porque vivemos em uma época marcada pelo excesso de proteção e de
fiscalização das crianças, assim como pela falta de confiança de que as
pessoas, de modo geral, sejam capazes de solucionar seus problemas por conta
própria. "É cada vez mais assumida
como verdade a ideia de que os indivíduos precisam de terceiros, ou seja, de
especialistas que resolvam suas disputas ou lhes digam como se relacionar com o
outro", afirmou Helene Guldberg a CLAUDIA. "Isso é negativo, pois mina a independência e a autonomia."
De acordo com sua tese, não é uma questão de negar a existência do bullying nem
de minimizar sua gravidade, mas de delimitar com maior rigor quando, de fato,
se trata de um episódio que merece essa classificação e, principalmente, quando
uma intervenção é recomendável. A interferência desmedida de pais ou educadores
nas pendengas infantis acaba alimentando as dificuldades da criança para se
relacionar, tanto na escola quanto na sociedade, e inibindo ou desenvolvimento
dela. "Não é fácil saber o momento
de intervir", admite Helene. "Há
sempre o risco de, ao fazer isso, o
conflito se agravar. Além do mais, ao se meterem, os adultos estão passando a
mensagem de que a criança não tem capacidade de lidar do sozinha com a
situação."
O desafio da convivência
Pesquisadores
definem o bullying como uma perseguição sistemática que se materializa em
repetidas humilhações verbais ou físicas. Não é raro que sejam ressaltadas
aquelas características que fazem o perseguido se sentir psicologicamente fragilizado,
como o excesso de peso ou a opção sexual. Os episódios costumam contar com um
trio de protagonistas: o agressor, a vítima e a plateia, que participa da agressão
ou apenas se cala e é conivente. A internet e as redes sociais colocaram mais
lenha na fogueira ao propiciar o surgimento de uma variedade amplificada desse
tipo de violência: o cyberbullying. O que antes ficava circunscrito a um
ambiente social, agora pode não obedecer fronteiras e ser praticado 24 hora O
brasileiro Joe Garcia, doutor em educação e estudioso da indisciplina escolar,
conta que, apesar de sempre ter existido, o bullying surge descrito e caracterizado
na psicologia por volta da década de 1970. "Historicamente, foi um avanço,
porque despertou a atenção das autoridades, mas agora precisamos adotar uma
atitude crítica em relação aos use e abusos, limites e possibilidades do
conceito", pondera o educador. Em outro palavras, não dá para sair
colocando esse mesmo carimbo nas diferentes manifestações de agressividade que
ocorrem dentro da escola, embora todas elas acabem fornecendo uma revelação:
"A convivência ainda é um dos maiores desafios a ser superado?",
acredita Garcia. Mas esse desafio nem
sempre entra na pauta do dia. Efeito colateral de sua superexposição, o bullying
tem monopolizado todas as atenções ofuscado outras questões relevantes, como a
discussão se a educação dada hoje às crianças as prepara mesmo para a vida
real. Em seu livro Why School Antibullying Programs Don't Work ("Por que os programas antibullying das
escolas não funcionam"), não publicado no Brasil, o psiquiatra
neozelandês Stuart Twemlow defende que as estratégias de combate adotadas mundo
afora revelam uma preocupação maior em punir agressores do que em criar um
ambiente de diálogo - e isso é essencial para que as vítimas se sintam capazes
de se defender sozinhas e todos possam encontrar formas mais saudáveis de se
relacionar.
A dor do amadurecimento
No Brasil, há estados em que já é
obrigatória a comunicação pela escola dos casos de bullying às Varas da
Infância e da Juventude. Além disso, a proposta do novo Código Penal tipifica
como crime essa forma de agressão. Um deslize dos programas de tolerância zero,
segundo a inglesa Helene, é dividir crianças em vítimas e agressores,
simplificando demais os relacionamentos. "Não
se ensina nada sobre a complexidade de amizades, os inimigos e as relações em
geral. Em vez disso, é apenas sugerido que, toda vez que se sentir vitimizada,
a criança poderá contar com terceiros para resolver seus problemas", ela
critica. Na sua opinião, se não quisermos formar uma geração incapaz de lidar
com insultos e os altos e baixos da vida, precisamos evitar posturas alarmistas
e superprotetoras, ainda que o agredido necessite de empatia. "Devemos reforçar a ideia de que ofensas
e atos de rejeição são perturbadores, mas que a realidade é assim, feita de
bons e maus momentos, e logo ele vai se sentir melhor de novo." Já o
brasileiro Bologna acredita que um equívoco das atuais abordagens do bullying é
partir de um mundo ideal homogêneo, quando deveriam preparar para uma sociedade
em que a diversidade é regra, não exceção.
"A escola é o lugar das iniciações, onde as crianças e os jovens se
socializam e devem aprender a conhecer a si mesmos e os outros, a conviver, a
se defender e a se proteger." Difícil para os pais é aceitar que uma
dose de dor é necessária para o processo de amadurecimento. Ser ignorado por um
grupo da classe ou excluído de uma brincadeira não é o mesmo que sofrer
bullying. Mas há mãe que não resiste a se meter em um caso assim. O impulso de
proteger o filho simplesmente não permite ficar parada, e ela peca por excesso.
Rejeição, raiva, frustração fazem parte da trajetória de todos, e não se deve
privar os filhos de vivenciar tais sentimentos.
Ninguém está dizendo para jogar a criança
aos leões para que cresça na marra. Só não pode exagerar na proteção. Ou
corre-se o risco de restringir a capacidade dela de enfrentar as situações mais
corriqueiras da vida emocional. A questão é que o limite entre abandonar à
própria sorte e salvaguardar demais é tênue. Até porque o ambiente escolar
tornou-se mais complexo. "Se antes
as manifestações de violência eram a opressão e o autoritarismo, hoje as
crianças e os jovens sofrem também por solidão, medo, sentimento de não
pertencimento e até de anonimato", diz Bologna. Daí a necessidade de
enxergar além da poeira levantada pelo bullying. Ou talvez seja impossível dar
apoio nessa hora.
educarparacrescer.com. br
(Revista CLAUDIA, agosto de 2012)
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