O psicanalisa Francisco Daudt da
Veiga afirma que estamos confundindo o sagrado direito de querer ser feliz com
uma busca frenética pelo prazer imediato. E defende a amizade como a única
coisa capaz de sustentar um casamento por décadas. Por
Carol Vaisman.
É óbvio, é óbvio ululante: todos os homens, sem exceção, procuram ser felizes.
Nada e mais justo, nada é mais certo – mas talvez nada seja também tão
acidentado quanto essa busca permanente.Mas a peleja é ainda mais
dramática nestes tempos de vícios em
grandes emoções. “Vivemos uma época de busca frenética pelo prazer imediato,
que está sendo confundida com felicidade”, afirma o psicanalista carioca Francisco
Daudt da Veiga, Com 35 anos de experiência em consultório, ele passa os dias imerso nos sintomas dessa ansiedade geral que
impacta especialmente as relações amorosas e a vida em família. Na entrevista que se segue, o autor de livros
como O Amor Companheiro e Onde Foi Que Eu Acertei, fala desse mar batido que cerca os casais, a
busca pelas terapias de casa, a predisposição à separação (para encontrar a tal
felicidade) e a tendência de idealizar o outro. E defende que a amizade é a
única coisa capaz de manter um casamento
feliz por décadas. “Ela é o verdadeiro porto seguro da nossa emoção”,
diz,contrapondo -a à paixão – uma espécie
de “loucura temporária”.
LOLA: Por
que as pessoas estão precisando tanto de ajuda para lidar com o casamento?
FRANCISCO: As terapias de casal são, na maior
parte, UTIs para casos terminais, quando o melhor que se pode fazer é ajudar para que a separação não seja tão
doente. Às vezes, elas ajudam efetivamente aqueles que têm dificuldade de
comunicação, o terapeuta serve de intérprete e diplomata entre as partes. Ao
mesmo tempo, pode se pensar que a maior busca de ajuda tem a ver com sua contrapartida:
a facilidade com a idéia de separação faria aumentara busca de alternativas. A
obsessão pela felicidade, fenômeno social recente, atua nas duas pontas –
separação e terapia.
O medo de sofrer virou uma epidemia?
O que
existe é essa obsessão pela felicidade,
que dá um empurrão em uma das características da natureza humana: a húbris (palavra de origem grega que
significa o excesso, a euforia), que sempre nos levou a rir, chorar, sofrer, a
nos drogar como nenhuma outra espécie o
faz. Vivemos uma época de busca frenética pelo prazer imediato, confundido
com felicidade. É como se diz por aí: gastamos um dinheiro que não temos, consumindo coisas de
que não precisamos, para impressionar pessoas que não conhecemos.
As pessoas
hoje acham que tudo precisa ser discutido, precisa ser levado ao divã?
Há
quem pense isso. Já me vi envolvido numa discussão em que a pessoa defendia
análise para a humanidade inteira, e eu na posição oposta, mostrando o perigo
de autoritarismo e homogeneização cultural que tal ideia contém. Quando recebo
um paciente, recebo um passaporte de limites precisos: só é da minha conta o
que for sintoma. Se o paciente aprecia exercícios físicos (sem vício nem
obsessão), apesar de eu ter horror a eles, decididamente não é da minha conta.
Os
relacionamentos amorosos ainda são muito idealizados?
Sim,
principalmente quando há paixão. A paixão é
um estado de loucura transitória em que a pessoa não se relaciona com a
outra, mas com a idealização que faz da outra. Por isso, sugiro sempre que os
casais só tenham filhos - essa sociedade eterna - quando a paixão passar, e
possam avaliar o amor que têm (ou não) em bases mais realistas.
A amizade é
sempre a receita para um casamento feliz?
Se amizade
quer dizer querer o bem do outro, achá-lo interessante, ter afinidades,
curiosidade sobre ele, e haver reciprocidade desses sentimentos, a
probabilidade de aumentar a vontade de estar junto é grande - e isso
proporciona um casamento feliz. Para os gregos clássicos, a amizade é uma das
três formas de amor (filia: amizade; ágape: camaradagem; eros: atração sexual).
Ela combina intensidade e capacidade de crescimento, pode incentivar erros,
fruto do carinho e da intimidade, mas não no registro da paixão, onde o bicho
pega.
Você diz
que, se o amor companheiro acontece por acidente, ele corre o risco de ser
acidentado. Por quê?
Afora
anúncios em sites de relacionamento ("Procuro amigo que se interesse por
música clássica e coleção de selos", etc.), que são de baixa eficácia, a
descoberta de afinidades e de atração por outras pessoas é mesmo acidental.
Quanto ao fato de o amor companheiro ser acidentado, não há relação humana
imune a esse risco. E ele é das mais seguras.
Mas excesso de companheirismo não pode minar a
vida de um casal?
O
companheirismo é uma bênção na vida de um casal. O apoio mútuo, a cumplicidade,
o achar graça um no outro, ter o que conversar são coisas que só enriquecem e
fazem aumentar o amor. Talvez o que você chame de excesso de companheirismo
seja a tendência de certos casais perderem suas individualidades e querer
partilhar tudo o que vivem, se "naquela base do só vou se você for",
inclusive a senha do computador. De largarem mão do direito de ter vida própria
e confundirem amor com o "de hoje em diante sereis um só corpo e uma só
alma", que até hoje alguns padres dizem. Isso, sim, é um desastre que leva
ao ódio reprimido, ao sadomasoquismo e/ou à separação.
O número de
pessoas que moram sozinhas está cada vez
maior por aí. Em Paris, mais da metade dos lares é formada por pessoas
solteiras. Em Estocolmo, o índice é de 60%.O afeto é bem resolvido para essas
pessoas?
Isso
envolve o cultivo do indivíduo, percebendo-se com ideias próprias, gostos próprios
e vontade de respeitar suas idiossincrasias. Corremos o risco de individualismo
narcisista? Sem dúvida. Na outra extremidade está o coletivismo soviético, onde
o conceito de indivíduo era algo a ser
exterminado em favor da comunidade e do Partido, a ponto de dizerem que "o
comunismo venceu a morte, pois a pessoa não passa de uma célula do grande corpo
da sociedade ideal, que continuará vivendo, mesmo que a célula se perca".
Deu no que deu. Mas também não há muito sentido em as pessoas morarem juntas se
não têm nem querem ter filhos - gerenciar uma família é um ótimo motivo para
viver junto.
Como a
ansiedade dos pais interfere na criação dos filhos?
A
ânsia de ver os filhos felizes pode levar ao wagging the dog ("sacudir o cachorro pelo rabo": um cão
sacode o rabo quando está alegre, mas o contrário não funciona: se você sacudir
o rabo do cachorro, ele não fica alegre). "Ah, meu filho vai ser muito
preparado: botei ele no inglês, no judô, na ginástica olímpica, na natação, no
piano, na aula de artesanato e no futebol." É, encheu a agenda do filho a ponto de ele não
ter tempo para brincar, nem sozinho. Se você quer seu filho saudável,
contemple-o, aprenda a lê-lo, a compreender a pessoa que ele é, suas
necessidades, que devem ser acolhidas, e suas capacidades e ambições, que devem
ser apoiadas.
Quais são os
perigos de se antecipar às vontades dos filhos?
"Eu
tive uma infância mais pobre, ficava invejando o brinquedo dos outros. Meus
filhos não vão passar por isso", e com essa ideia saem os pais comprando
para os filhos aquilo que eles, pais, gostariam de ter tido, e contribuindo
para um desastre, que é uma geração apática, sem vontades, sem projetos, sem
ambições e mimada. É um ponto em que, nos Estados Unidos, o termo spoiled (estragado, mimado) está sendo
substituído por entitled (que se
sente no direito de ter tudo, com
arrogância). São jovens com a intuição de que as coisas caem do céu, sem
esforço nem espera.
E qual é o
papel da paternidade hoje?
Os
homens colhem hoje um beneficio precioso, que é fruto do feminismo: a
paternidade participativa.
Quando eu era menino, nos anos 50, meu pai era
daqueles que chegavam do trabalho para jantar e corrigiam nossos modos à mesa.
Pouco mais que isso. Era um provedor ótimo, mas que não deu moleza em matéria
de dinheiro - o que foi um grande estímulo para a busca de nossa independência
financeira. Eu, por minha vez, já tive a oportunidade de me envolver mais
ativamente na criação de meus filhos, participar de suas conquistas e consolar
seus dissabores, sem nunca perder a autoridade (a principal ferramenta na
criação dos filhos), mantendo a austeridade (uma atenuação da mão fechada do
meu pai), cultivando o espírito, valores éticos, senso de humor, leveza no
trato de qualquer assunto, mas nunca a leviandade. Ou seja, um pai de hoje pode
ser pai de um jeito muito mais ativo.
E o papel da
maternidade foi afetado?
Por
certo. Mães que trabalham fora aprendem que o cuidado dos filhos pode ser
partilhado com várias pessoas que gostam deles. Marido, creche, parentes, babás
(demita aquelas que querem desenvolver dependência nas crianças, fazendo tudo
por e com elas). Já é mais raro encontrar crianças que "estranham" se
não estão no colo da mãe ou agarradas à sua saia. Meu principal medo é que essa
mãe se sinta culpada por não dar aos filhos dedicação integral e queira
compensá-los pelo excesso. A culpa é o principal corrompedor da tão necessária
autoridade.
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