Por Martha Medeiros
Vou
manter o nome dele em sigilo, já que é um renomado cirurgião, mas vou delatar o
crime: meu pai não tem celular. Em sua defesa, ele diz que pode ser encontrado
no consultório ou em casa, esses dois telefones bastam, sempre bastaram.
"Mas, pai, e se teu carro pifar no meio da estrada? E se te sentires mal
durante uma caminhada na rua? E se te atrasares no caminho para buscar a namorada?"
Ele é um homem moderno, aos 76 anos tem uma namorada, mas não tem celular.
Eu ficava
indignada por ele manter essa inacessibilidade. Parecia que ele estava querendo
apenas ser diferente dos outros, e os diferentes sempre dão a entender que são
mais evoluídos, que possuem uma sabedoria que nós, reles mortais, jamais
conseguiremos atingir. Como ele pode prescindir de um aparelho imprescindível?
Ora, imprescindível pra mim, pra você. Para ele, não é. Só então lembrei como
também costumo ser patrulhada.
Faz pouco
tempo, uma amiga demonstrou uma irritação descabida comigo. Não entendi:
"O que foi que eu fiz?". Ela disse que eu fazia isso só para me
exibir. "Isso o quê, criatura?". Não conseguia adivinhar o que a
magoava, até que ela esclareceu. "Você não tem Facebook nem Twitter para
se sentir superior."
Eu
realmente não uso as redes sociais. Sei que tem Faces que divulgam frases
minhas, e que há alguns perfis de pessoas que fazem de conta que sou eu, mas
não sou eu. Não é para me sentir superior ou inferior: simplesmente não tenho
tempo sobrando. Já é um esforço conseguir manter a caixa de e-mails
razoavelmente atualizada, para que procurar mais encrenca na minha vida? Meu
tempo ocioso é sagrado. Expliquei para minha amiga que não era nada pessoal,
que ela relaxasse, mas aquele dia ela estava surtada pela TPM. O Face e o
Twitter eram apenas os primeiros itens de uma longa lista que ela havia
mentalmente preparado para me condenar à exclusão.
"E
quanto a não idolatrar a ajuda das empregadas, como qualquer outra mulher
atarefada?" Não acreditei que estava tendo essa conversa. Lembrei que uma
semana antes havia comentado que a hora mais feliz do meu dia era quando a
empregada saía pela porta dizendo: "Até amanhã, dona Martha". É uma
funcionária exemplar que está comigo há mais de 20 anos. Trabalha de segunda a
sexta das 10 às 16 horas, e ainda vibro quando ela pede para sair mais cedo.
Adoro escutar a porta batendo e a sensação de que estou sozinha em casa. Não me
sinto confortável no papel de patroa. Jamais cogitaria que alguém trabalhasse
para mim à noite ou aos sábados (já devo ter levado muita chibatada no tronco
em outra encarnação). Preciso do serviço dela porque ainda tenho filhas morando
comigo, um apartamento grande e tal. Mas chegará o dia em que, filhas no mundo
e apartamento menor, ficarei no meu canto tomando conta de mim mesma. Minha
amiga acha isso o cúmulo do esnobismo.
"E
sobre não gostar de bater perna em shoppping?" Ué, não gosto, é pecado?
Vou quando tenho que comprar um presente ou quando preciso de algo específico,
mas não me convide para uma tarde olhando vitrines. Experimentar roupas em
cabine de loja me faz simpatizar com a morte.
"Mas
de dirigir você gosta, não gosta?" Amo.
"Mesmo com esse trânsito esquizofrênico?" Mesmo. "E vem dizer
que não está bancando a diferente."
Pelo
andar da carruagem, eu sabia que a discussão iria acabar nos contos de fadas, e
não demorou nada. Logo ela tirou da manga a vez em que contei que, quando
menina, meu desenho animado favorito não era o da Gata Borralheira nem o da
Branca de Neve. Sempre fui fã do Mogli. Minha amiga não se conforma até hoje.
"Claro, a fanática pela vida na selva, a porta-estandarte da liberdade, só
podia mesmo vibrar com um pirralho criado entre os bichos da floresta, sem pai,
nem mãe, nem fada madrinha."
Não
resisti e, só para provocar, comecei a cantarolar a música do urso Balu:
"Eu uso o necessário/ somente o necessário/ o extraordinário é demais/ o
necessário/ somente o necessário/ por isso é que essa vida eu vivo em
paz". Mogli me ensinou a diferença entre o dispensável e o vital, enquanto
as princesas tentavam me empurrar goela abaixo que o certo era esperar (deitada
e dormindo) pelo surgimento de um príncipe. Por pouco não caí nessa.
Minha
amiga tinha mais um item da lista que, segundo ela, me tomava um ser esquisito
à beça. "E sobre viajar sozinha, quer me explicar?" Viajar sozinha é
outra anomalia que ela não perdoa. "Não é possível que você goste.
Confesse: você chora escondida no quarto do hotel. Ninguém pode considerar
agradável senta num restaurante em Paris e conversar somente com seus
botões."
Bom, eu
nunca escondi que me derreto por uma lua de mel: claro que a melhor coisa do
mundo é viajar com o amor da nossa vida. Mas, se durante um período de
entressafra, o amor da sua vida for apenas você mesma, vai ficar mofando em
casa a troco de quê? Qual o problema de dar um giro por Roma, Nova York, Buenos
Aires? Humm, já começo a ter ideias.
O
problema é que ir contra o senso comum é considerado um desaforo. Mulher tem
que adorar falar ao telefone (detesto), tem que torrar o salário em bolsas e
sapatos (prefiro colares e pulseiras), tem que ter lido e amado Cinquenta Tons de Cinza (há outras prioridades
na minha mesa de cabeceira) e tem que sonhar em perder 2 quilos.
Ufa,
agora encontrei minha turma. Também sonho em perder ao menos 2.
Todos
nós somos diferentes e idênticos, dependendo do que se trata. Temos desejos e
angústias parecidas, e desejos e angústias únicas. Uns são mais iguais que
outros, uns são mais estranhos que os demais, e essa saudável miscelânea é que
dá graça à vida. Não há mais sentido em falar em "rebanho", como se
houvesse uma tribo hegemônica e o resto fosse periférico e marginal. Além do
rebanho, há alcateias, cáfilas, cardumes, manadas, bandos variados que se frequentam
e se divertem mutuamente. Que ninguém se
sinta ameaçado em suas convicções sobre o que é "normal". Tudo é normal,
desde que não faça mal.
(Revista LOLA, janeiro de 2013.)
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