Se
alguém contar a história dele, vão achar que é mentira. Afinal, nasceu em
Santiago do Boqueirão, era branquelo de origem italiana, nunca conheceu o morro
e, mesmo assim,
dizia
ser sambista. Nunca tomou um porre, mas se considerava boêmio das noites
estreladas, ou boêmio "de família". E foi inspirado na Lua, a qual chamou
de Pandeiro de Prata, que ele provou o improvável: podia, sim, nascer no
interior do Rio Grande do Sul um sambista de primeira. Nasceu, cresceu e
brilhou, entrando para a história do samba e da música popular brasileira,
misturando o tango de Gardel com o samba de Noel Rosa.Ele
é o santiaguense T ülío Piva, que é considerado o segundo maior sambista
gaúcho, ficando atrás apenas de seu amigo Lupicínio Rodrigues.
No Boqueirão de
Santiago
Tudo começou no inicio do século 20, em
Santiago. Túlio era um dos quatro filhos do italiano José Piva com Almerinda
Simas, prima de Adelmo Simas Genro, pai do ex- governador Tarso. Os Piva eram
uma família próspera, dona de drogaria e de fábrica de sabonetes em um prédio novo,
no Centro, ao lado do casarão da família, preservado até hoje.
Túlio nasceu em 4 de dezembro de 1914 ou
1915. Na certidão, consta 1914, mas em todos os outros documentos, ele colocou
1915, não se sabe o motivo. Por isso, a família adotou 2015 para festejar seu
centenário.
Primeiros passos na
música
O jovem começou a brincar com a música na
infância, aprendendo gaita de boca aos oito anos, e flauta, aos 12. Túlio
estudou um ano em Santa Maria, no Colégio Fontoura Ilha, e três anos em Porto
Alegre, no Anchieta, onde começou a arranhar o violão, instrumento que aprendeu
sozinho. Voltou para Santiago, onde trabalhava no comércio da família e
aproveitava as horas livres para escutar tango em rádios argentinas, como a
Belgrano.
- Ele era amigo do médico e poeta Aureliano
de Figueiredo Pinto. O Aureliano fazia os poemas, de madruga- da, e, pela
manhã, entregava os originais, à mão, para o Túlio Piva escrever na máquina
datilográfica. O Túlio me contou que fazia isso com uma condição, de que
ficasse com os originais. Ele guardou isso por muito tempo e, quando o
Aureliano morreu, entregou os escritos à mão para os filhos do Aureliano -
conta Kenny Braga, ra- dialista e autor da biografia de T MO.
Os primeiros sambas
Em Santiago, Túlio já participava de
serenatas e concursos. Apaixona- do por tango, o santiaguense se maravilhou
pelo samba ao ouvir, pela primeira vez, Noel Rosa, na Rádio
Nacional.
Começou a compor sambas em 1938. E já em 1940, no ano em se casou, em Santiago,
compôs seu primeiro samba famoso, sem nunca ter conhecido o morro: a música Tem Que Ter Mulata. Em 1942, veio sua primeira
grande frustração. Enviou essa composição para um concurso da Rádio Nacional do
Rio, que acabou respondendo com um selo de "Recusada". Isso mexeu com
Túlio, mas foi essa a música que primeiro fez sucesso nacional, após ser
gravada por Caco Velho, nos anos 1950. Depois, foi regravada
até
na Rússia. Túlio contava que teve a grande emoção ao, andar por Montevidéu, num
Carnaval, ouvir Tiene de tener mullata.
- Ele tinha uma maneira de compor única. Tem Que Ter Mulata é um samba com
marcação quase tangueira. A batida de violão dele, até hoje não vi ninguém
fazer nada parecido. É uma batida cheia, percussiva, que preenche todos os
elementos do samba. Essa é a grande marca do Túlio - diz o neto Rodrigo Piva,
que vive em Florianópolis com o irmão Rogério, também músico.
De Porto
Alegre ao estrelato
Nos anos 1950, Túlio passou a viver cada
vez mais dedicado à música. Aos 40 anos, como sabia que Santiago era pequena e
longe demais das capitais para seu samba brilhar, ele convenceu a família a vender
tudo e a se mudar, de mala e cuia, do Boqueirão para Porto Alegre. Em 1955, na
Rua da Praia, abriram a Drogaria Piva, que passou a ser ponto de encontro de
sambistas. Túlio compôs muitas músicas lá. Começou a participar de programas de
rádio e, na Gaúcha, conheceu a também iniciante Elis Regina, que pouco depois
gravou duas músicas de Túlio em seus primeiros discos: Silêncio e Mundo de Paz.
Pandeiro de Prata
Em 1968, Túlio já ganhava fama e
reconhecimento como compositor, mas foi esse o ano de sua maior emoção e de sua
consagração. Inspirado na Lua, o boêmio cantou Pandeiro de Prata no 2º Festival Sul Brasileiro da Canção Popular, em
Porto Alegre. Desde a primei-
ra
apresentação, o público cantou junto. Mas na final, a multidão que lotava o
ginásio cantou o bis três vezes. Túlio venceu ,e saiu carrega- do pelo povo. A
vitória o classificou
à
final nacional do concurso Brasil Canta no Rio, da TV Excelsior, no Maracanãzinho,
no Rio. Tida como favorita, Pandeiro de
Prata perdeu. Reza a lenda que o som foi "sabota- do" e o público
mal ouviu a música. Mesmo assim, ele ficou conhecido no país. Vários cantores
gravaram suas canções aqui e no Exterior. Fez muitos shows pelo interior. Em
Santa Maria, o primo Adelmo Simas Genro arrumava os shows.
Gente da Noite
Sambista famoso, nos anos 1970, Tulio
chegou a concorrer a vereador da Capital, em 1972. Depois, decidiu viver só da
música. Fechou a Drogaria Piva para se dedicar a dois bares. Primeiro, o
Pandeiro de Prata e, de 1975 a 1985, comandou o Gente da Noite, na Cidade
Baixa, que virou referência em samba. Os principais sambistas e músico do Brasil,
quando iam a Porto Alegre, passavam por lá e acabavam dando uma palinha ou iam
ver Túlio. Foi assim com Paulinho da Viola, Beth Carvalho, Jamelão, Baden Powell,
Germano Mathias, Luiz Vieira, Luiz Américo, Os Originais do Samba, Simonal,
Demônios da Garoa, Nelson Ned e Benito de Paula.
Nesses 10 anos, Tulio cantava no bar quase
todas as noites junto a Eneida Martins, com quem gravou três de seus quatro
discos. A casa lotava e chegava a abrigar 400 pessoas. Mas quando a esposa
Eloíza mandava, ele ia embora sem chiar. O bar fechou em 1985, pois a rotina era
desgastante.
-
Fechei porque cansei do dia. Eu tinha de fazer tudo: pagamentos, compras e
aquilo me esgotava - disse Tulio, em 1988, à Zero Hora.
A luta contra o
câncer
No livro Aqui me Tens de Regresso - Contos
e Causos de um Boêmio Safado, o genro e escritor Jayme Camargo Piva lembra emocionado
dos últimos anos de vida de Túlio e da luta contra um câncer de intestino. Para
preservar a família do sofrimento, só Jayme e Túlio sabiam da doença e da
gravidade que o caso foi tomando. Após a cirurgia, Jayme o acompanhou às infindáveis
sessões de químio e presenciou as tentativas desesperadas
de
cura, em que Túlío tomava até chapoeiradas e procurava curandeiros. O sambista
ainda cantou junto com os netos Rodrigo e Rogério, no show em sua homenagem, organizado
pelo Bando Barato pra Cachorro, em 1991. Mas em 1993, foi internado no hospital
São Lucas, da PUC, e, dias depois, faleceu.
Jayme lembra, no livro, que, ao entrar no
hospital, Túlio foi recebido com uma emocionante homenagem. Uma das enfermeiras
era Maria Helena Andrade, grande cantora da noite gaúcha. Ao leva-lo para fazer
um exame, ele foi recebido por um coro de funcionários do hospital, que cantou
seus sambas para tentar alegrá-lo.
(Deni
Zolin - Diário de Santa Maria, 28 /29 de novembro de 2015)