Se eu fechar os olhos agora, ainda posso ouvir minha avó lendo para mim um conto de capa e espada, uma caçada a um dragão ou as peripécias de um pirata inglês fugindo da Armada espanhola no mar do Caribe. Eu nem sabia ler ainda, mas a ideia de pousar os olhos naquelas páginas e encontrar aventura, suspense e emoção me impelia a querer dominar logo a sopa de letras que me intrigava. Alfabetizar-me era ter acesso a um repertório infinito de sensações.
Tenho -pena dos que não gostam de ler. Mas tenho mais pena ainda dos
que não conseguem ler. Se aqueles estão voluntariamente privados do hábito da
leitura, a estes foi cruelmente surrupiado o prazer inebriante da fabulação
escrita. O educador Rubem Alves corita que Cem Anos de Solidão
lhe produziu espantos e ataques de riso. Para ele, entrar
em contato com a literatura de Gabriel García Márquez
era experimentar o assombro de um mundo fantástico sem precisar se drogar. "Quem lê não
precisa cheirar pó", concluiu.
Esse torpor que a literatura provoca só pode estar
mesmo ligado ao prazer. Ler não deve ser castigo jamais. Jorge Luís Borges dizia que há tantos livros deliciosos para serem lidos que não vale a pena ler os que não são prazerosos. Ler me torna livre inclusive para não ler. Nisso tenho a companhia de Fernando Pessoa: "Ai . que prazer/Não cumprir um dever/Ter um livro para ler/E
não o fazer". Mas só sou livre, de fato, se o ócio for uma escolha, se
o deleite de uma nova história me for possível assim que eu desejar. -
Trata-se de uma
monstruosa violência
manter milhões de pessoas afastadas das possibilidades que a leitura oferece,
os chamados analfabetos funcionais. São indivíduos que, embora reconheçam as
palavras, não conseguem compreender nem interpretar um texto. O IBGE considera
analfabetos funcionais os adultos que. têm menos de quatro anos de estudo.Por esse critério, 20% da população seriam
de analfabetos funcionais. Mas pesquisas mais aprofundadas, com critérios mais
rígidos e específicos de apuração de capacidades, feitas pelo Instituto Paulo Montenegro
e pela ONG Ação Educativa, apontam que 75% da população seriam de analfabetos
funcionais. Ou seja, de cada 4 brasileiros, 3 não conseguem compreender e
interpretar um texto mais complexo.
Qual o impacto dessa
tragédia cultural num ambiente de novas plataformas de leitura, em que a escrita telegráfica domina os dispositivos móveis
digitais? Não vejo políticas públicas apontando para o direito fundamental de ter
acesso ao prazer da literatura. Uma nova campanha abolicionista, contra a
escravidão da ignorância e pelo direito de compreender um texto escrito é a tarefa de todos os que se envergonham de viver
num país de iletrados à força.
(Marcelo Canellas – DIÁRIO DE SANTA MARIA, 13 de
setembro de 2015)
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