Hilda Lucas
Os relacionamentos acabam, mas tudo o que você viveu com a outra pessoa não. E para onde vai esse acervo afetivo? Para onde
vai o conhecimento intransferível que se tinha do outro? Ah, vai para o weCloud, uma nuvem etérea que armazena o
sumo da absoluta intimidade que vocês tiveram.
Para onde vai tudo que se vive? Para onde vai a
mágica de certos instantes? A comunhão que se viveu, a cumplicidade de dividir
tempo, espaço, experiências inaugurais? Para onde vão o carinho, a parceria, a
entrega? Para onde vai o conhecimento, pessoal e intransferível, que se tinha
do outro? Para onde vai o que só vocês viram e experimentaram: o nascimento de
um filho, a morte de um amigo, a noticia daquele emprego, o assalto, a compra
da casa, o diagnóstico ameaçador, a noite no acampamento, aquele show em
Londres? Para onde vai a consciência que você tinha de, com apenas um olhar,
saber se ele estava feliz, deprimido ou ansioso?Para onde vai a absoluta
intimidade que se teve com o outro?
Acredito que isso tudo fica em algum lugar interno,
como um site, uma espécie de nuvem onde armazenamos tudo o que vivemos. Tão
reais e etéreos como o iCloud, temos
os nossos weClouds, que podemos
acessar ou que nos acessa, algo que fica preservado, e que, mais do que nos fazer
lembrar coisas, nos acolhe e ratifica. O weCloud
guarda o essencial, o que ficou depois da ruptura, da tempestade, o rescaldo de
um tempo, um a dois permanente, que sobrevive aos acordos rompidos, às bênçãos
desfeitas, às juras esquecidas. No weCloud,
ficam o sumo, o substrato, a força do projeto um dia com partilhado. No weCloud, ficam o afeto espontâneo, o
registro das intenções sinceras, da vontade de acertar e de tudo o que foi
verdadeiro.
Os relacionamentos podem acabar, mas não o vivido.
Não se trata de memória, nem de "detalhes tão pequenos de nós dois".
Não se trata de viver no passado, nem de não aceitar os fatos. Não se trata de
sublimar dores e porradas ou se refugiar num mundo alegrinho de autoajuda e negação.
Não se trata de dourar a pílula e contar para si uma história diferente.
Trata-se de vida bem vivida que não pode nem deve ser perdida. Tudo o que
vivemos e sentimos vira acervo, fonte, ferramenta; é nosso para sempre.
Quando estamos com alguém, somos, em alguma
instância, uma pessoa única, que só aquele companheiro conhece. Maria é para
João uma Maria que ela nunca será para Pedro, que é um Pedro para Maria que
nunca será o mesmo para Ana. Maria poderá ser muito mais feliz com Pedro do que
com João, mas ela terá sempre sido a Maria do João e haverá
sempre um lugar onde Maria e João se reconhecerão,
mesmo que nunca mais se encontrem.
Somos o que vivemos, e não podemos abrir mão disso.
É fundamental que cuidemos da nossa história, que saibamos acolher nossas
experiências com generosidade e entendamos que certas vivências, emoções e
descobertas foram únicas e estarão sempre produzindo algum efeito em nós.
Todo fim de relacionamento pede tempo. Tempo para o
luto, para a saudade, para a cura, para o distanciamento, para a neutralidade,
para o recomeço. Existe um caminho a percorrer que vai do fundo do poço ao
fórum, do desespero, ao terapeuta, da perplexidade à aceitação, do abandono à
libertação. Há que fazer faxinas: roupas, livros, fotos, palavras mal ditas,
mágoas, decepções. Há que separar papéis, propriedades, planos, sonhos. Há que
separar, acima de tudo, o trigo do joio, o passado do futuro, o extinto do
eterno. Há que guardar as coisas que não cabem em malas nem cofres, aquilo que
não se quantifica nem se elenca em formais de partilha e declarações de renda
Há que "amar o perdido".
Só quem tem passado tem futuro. Escolher a bagagem
que se carrega é decisivo para seguir adiante. Entre fardo e combustível, asas
e correntes, você decide. Entre salvar e deletar, você decide. Conjugar sem
medo o pretérito imperfeito para viver o futuro do presente.
Depois de um tempo, as dores passam ... Sim, elas
se cansam de nós e, se somos saudáveis, nos cansamos delas também, seguimos em
frente, voltamos para nós mesmas, dispensando o que não nos serve mais,
garimpando minúsculas preciosidades, recolhendo luminosidades, cheias de
preguiça de sofrer, prontas para recomeçar, de novo, mais uma vez. Um belo dia
você se pega pensando naquele "nós", que deixou de existir, sem a
fisgada de saudade, nem ressentimento, nem raiva Você pensa com serenidade.
Você pensa não mais no "ex", mas no companheiro de vida: sai o
"ex", fica o antigo.
É quando você o abraça no velório do pai e sabe
como ele está se sentindo e ele também sabe que você sabe como ele se sente, e
isso é muito Íntimo e confortante e está lá, na tal nuvem, para sempre.
É quando você recupera em DVD seus filmes em Super
8 e fitas em VHS, com todas as fases e faces queridas da sua vida, e faz uma
cópia para ele, pois que sabe que aquilo tudo é parte da vida dele também, e
você se sente grata por compartilhar,
É quando você recebe um presente sem cartão: um
disco de vinil de um show que você foi com um certo namorado. Pronto, lá está o
para sempre: os anos 70, a avidez de descortinar o mundo, a lalica, a
revolução, o incrível mundo das primeiras vezes, compartilhado com entrega e inocência.
O cartão é desnecessário, pois só você e ele sabem quem vocês eram naquele dia-tempo
e o que significou está ali naquele concerto de rock.
É quando você encontra numa caixa esquecida rolhas
de Champagne e sementes de romã, que fazem você lembrar quem você era e como
você se sentia quando estava totalmente apaixonada por aquele cara na Itália.
É quando você escreve um livro sobre maternidade e
manda em primeira mão para o pai dos seus filhos, porque ninguém mais do que
ele sabe como você ficava quando estava grávida, pois só ele viu seu estado de
graça e, talvez, antes mesmo de você, ele viu você virar mãe.
Lá estão vocês, no weCloud, sócios de experiências transformadoras, parceiros de
sonhos, realizados ou não, amigos que cresceram juntos, cúmplices dos pequenos
crimes contra o amor, vitimas dos mesmos desgastes da convivência, ungidos por
bênçãos comuns, coautores e personagens do mesmo livro.
Maria não é mais a mesma que foi com João, mas, para
ser a Maria que está com Pedro, ela teve que ser a Maria do João, e João, para
ser o companheiro de Ana, teve que ser antes o de Maria. Somos o que nascemos e
o que escolhemos viver, somos o que ganhamos, o que perdemos, o que boicotamos
e o que nunca alcançamos.
É muito libertador fazer as pazes com nossa história.
Do que nos serve ter rombos na linha do tempo? Negar, bloquear, tornar inacessíveis
as lembranças, impossibilitar um resgate saudável do vivido? Do que nos serve
chamar ex-companheiros de falecidos ou equívocos? É injusto conosco. É empobrecedor.
Temos essa mania de achar que só o que dura para sempre é um sucesso. Durabilidade
nunca foi sinônimo de segurança, assim como o efêmero não é sinônimo de
fracasso. Uma jaula é segura e nem por isso um lugar feliz, da mesma forma que
viagens são fugacidades maravilhosas que se perpetuam dentro de nós. Nenhuma
história é vã. Nada é. Nossa alma-memória, aquela que nos identifica, define e
referencia, é como uma colcha de retalhos; alguns retalhos são mais bonitos que
outros, mas todos são necessár7ios.
"Amar o perdido deixa confundido o
coração" (Drummond) porque é amar o intangível, o que, não sendo mais,
ainda resiste, insiste e ressignifica, o que antes tinha outro nome e valor.
Amar o perdido é reconhecer que muito tempo, energia e as melhores intenções
foram investidas, empenhadas e depositadas numa relação, num incrível voto de
confiança no outro e na Vida. Sim, mesmo os grandes erros e as falências
retumbantes têm histórias comoventes e belas. Amar o perdido é entender que
nada se perde.
Amar o perdido só é possível quando você volta para
a casa dentro de você. Melhor que dar a volta por cima, é voltar para si mesma.
Nessa hora você se sabe inteira, apaziguada, de bem com sua história. Aí, você
entende o weCloud e lembra de
Quintana dizendo: "eternas são as nuvens", e você se comove com a certeza
de que um certo "para sempre" existirá, pois "as coisas findas,
muito mais que lindas, essas ficarão" (CDA).
É isso, não fica o que é lindo. Fica o que finda.
Fica de um jeito real. Não fica lindo só porque finda. Fica, porque finda, e,
quando finda, fica o que foi de verdade, o que nunca finda.
As coisas findas ficam. Perdidas, talvez, mas para
sempre nossas. Eternas, como só as nuvens podem ser.
(Revista LOLA, outubro de 2012)
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