O sonho do que poderia ter sido é
sempre
mais poderoso, porque nos permite imaginar.
Outro dia, recebi um e-mail de um antigo fã e bem que gostei. Quando
nos conhecemos, houve uma certa
paquera, mas
não totalmente
explícita (éramos muito
jovens e ele era tímido). A vida
nos levou por caminhos diferentes. Depois
desse tempo, nos vimos
algumas vezes e, em todas elas,
nos olhávamos com um certo encantamento - e
retomávamos nosso rumo, cada um para seu lado.
Para muitas pessoas, é mais fácil escrever do que falar. Anos tinham se passado e só nesse e-mail
ele disse, com todas as palavras, que havia desenvolvido um começo de
paixão por mim, o que adorei. Adorei e respondi contando que, na época, desconfiei. Ele voltou citando um
poema de Alberto de Campos (um dos heterônimos de Fernando Pessoa), Na Noite Terrível. Fui correndo
procurar o livro na estante, mas não encontrei. Fui ao Google - santo Google - e achei logo, logo.
O poema é perturbador. Fala de um homem que, em suas noites de insônia, pensa no que não fez e poderia ter feito;
no que não foi e poderia ter sido. Pensa que, se em determinado momento tivesse virado à esquerda e
não à direita, tivesse dito sim no lugar de dizer não, hoje poderia ser outro, e até o Universo poderia ser
outro também.
É claro que o texto me
perturbou. É cruel pensar que nossa vida
talvez fosse, hoje, outra.Que, se ouvíssemos mais -
ou menos - nosso coração,
encontrássemos mais coragem, sobre- tudo
com apenas 20 anos, tudo seria diferente.
Mas só sabemos disso muito mais tarde,
e 20 anos só se tem uma vez,
ai, ai.
No caso em questão, não houve nada. Tentei lembrar de outros namoros que
aconteceram mais ou menos na mesma época e dos
quais, mesmo fazendo um grande esforço, mal
me recordo. Namoros que na época deram até a impressão de ser amor, pelos quais
eu até pensei que sofri e dos quais não lembrava nem dos traços físicos nem do
nome. Isso sim é terrível.
Que mistério é esse que faz as
coisas que acontecem ficar intactas na
nossa mente e no nosso coração? Se tivéssemos iniciado um romance talvez houvesse restado uma dor, uma raiva, arrependimento.
Mas o sonho do que poderia sido sempre mais poderoso porque nos permite imaginar,
e a imaginação costuma ser melhor do que qualquer
realidade.
Meu ex-fã caiu na armadilha em que todos caímos às vezes, e que é um perigo; revolver o
passado. É como, num dia de chuva (e
solidão), abrir aquele velho álbum de fotos. Lembrar dos momentos
tristes é cruel, e dos momentos felizes também - nem sei o que é pior. Mas não caia na cilada: invente um cinema, vá fazer um bolo ou, na última das hipóteses, ligue a televisão e veja um programa qualquer, mesmo
sendo de auditório em um sábado ou domingo. É apenas uma maneira de se proteger; pensar no passado é
perigoso, porque ele não volta.
Tudo que acontece na vida está
preservado no fundo do coração. Essas lembranças são ex- clusivamente suas,
fazem parte da sua história. Devem ser deixadas quietas, porque qualquer coisa
que se refira ao passado dói. E um viva à tecnologia, que guarda num objeto minúsculo,
o pen drive, todas as fotografias e canções de momentos importantes, mas que
não conseguem nos emocionar tanto quanto uma foto bem antiga ou um disco de
vinil.
O dia está lindo; o céu, azul. E
a vida está aí mesmo para ser vivida, sem ontem nem ama-nhã: só hoje, e agora.
(Revista CLAUDIA, outubro 2014.)